Por Gabriel Guimarães
Hoje, chegamos à última parte da série de reportagens especiais produzidas pelo blog sobre os acontecimentos que mais marcaram a nona arte na primeira década do século XXI, e muitos me perguntaram ansiosos qual ítem teria tamanha importância a ponto de deixar em posições mais baixas na lista o excelente relacionamento dos quadrinhos com o cinema (abordado há poucos dias
aqui no blog), ou a criação da turma da Mônica Jovem (analisada
aqui no blog um pouco antes), ou mesmo a compra da Marvel pela Disney (acontecimento que já foi discutido
aqui no blog também). Entretanto, acima desses eventos que, sim, foram muito importantes para os quadrinhos, esteve a forma como os quadrinhos reagiram ao que só pode ser chamado de revolução digital pela qual o mundo e a sociedade passaram nessa década. Que essa década foi absurdamente marcada pelo desenvolvimento desenfreado dos recursos tecnológicos, ninguém pode negar. Mas, de que forma esse fator que predominou na década afetou as histórias em quadrinhos, exatamente?
Todo meio de comunicação depende essencialmente de um elemento, que o próprio nome já diz: comunicação. O que supõe, claro, que deve haver um produtor de informação e um receptor de informação. Uma comunicação é bem sucedida quando a mensagem criada pelo produtor chega e é compreendida de forma correta pelo receptor, o que pode parecer óbvio. Nesse percurso da mensagem, há o que muitos comunicólogos chamam de ruídos, que são interferências externas que alteram a interpretação e decodificação das linguagens através da qual a mensagem é contruída e recebida. Isso pode parecer redundante, irrelevante até para os leitores de quadrinhos em geral, porém, sem a compreensão desse processo, como seria possível realizar qualquer ato comunicativo, como pretendem as histórias em quadrinhos?
A sociedade foi constituída em cima desses pilares, e é através deles que a cultura dos quadrinhos se disseminou. No começo da produção dos quadrinhos nos grandes centros urbanos, a divulgação e comércio de histórias era feita quase que única e exclusivamente através da comunicação boca a boca, onde, por exemplo, um garoto que recebesse do pai um gibi do Batman, o lesse, e gostasse, passava a ele próprio propagandear o material aos seus amigos, garantindo dessa forma tão despretensiosa o crescimento na venda das revistas em quadrinhos. Não se trata de um exagero essa minha afirmação, pois não proponho que um só garoto foi o responsável pela construção de um meio de comunicação, proponho que essa sequência de ações ocorriam em larga escala, de uma forma tão exponencialmente representante, que foi a partir muitas vezes desse processo que os quadrinhos começaram a serem conhecidos e comprados.
Com o tempo, a televisão, o cinema e o rádio se desenvolveram e passaram a ser os principais meios através dos quais qualquer forma de comunicação era divulgada, como revistas e livros, seguindo simplesmente a ordem natural dos eventos. Chegamos à última década seguindo nesse panorama.
McLuhan, reconhecido estudioso dos meios de comunicação acreditava que estes seriam formas de extensão do homem, onde uma câmera filmando uma reportagem do outro lado do mundo em que se encontrava o espectador nada mais era que uma expansão do sentido da visão inerente ao homem, o rádio, seria a expansão da audição, e assim por diante. Nessa última década, um meio pelo qual a informação se dava se destacou de forma mais exacerbada que os demais: a internet. Ela reduziu distâncias, representou mudanças político-sócio-temporais em todas as sociedades ao redor do mundo. E os quadrinhos não poderiam, jamais, deixar de serem afetados por ela.
O grande acontecimento que afetou as histórias em quadrinhos na década, afirmo, foi a resposta dos quadrinhos à adesão global da internet e dos meios tecnológicos. A internet levou a uma inclusão global que poucos sonhavam nas décadas antes de seu surgimento e afirmação, permitiu uma divulgação de conteúdos em uma proporção muito além do que a va imaginação humana é capaz de pensar.Uma palavra jogada errada num twitter, hoje, em um ponto do globo pode levcar a represálias e conflitos físicos em pontos geograficamente distantes, só para supor um exemplo. Quando se pensa nas novas dimensões em que uma produção artística exposta online pode ter hoje, começa-se a perceber a razão de eu ter posto esse evento no topo da lista da década.
Com a internet, ocorreu um aumento estrondoso no número de artistas que publicavam seu material de quadrinhos. Reduzindo consideravelmente uma das grandes dificuldades que os artistas encontravam, que era procurar uma editora que estivesse disposta a publicar uma tiragem em papel de suas obras (o que não era nada fácil, especialmente para quem fazia quadrinhos, já que as editoras, em geral, só arriscam uma publicação assim quando sabem que haverá uma resposta economicamente viável do público, o qual na realidade, não era garantido), a internet se mostrou uma ótima solução para eles, que começaram a correr em direção ao mercado digital com suas tramas e enredos que eram guardados na gaveta. Com isso, o número de produtores de quadrinhos explodiu, e acabou levando junto o número de leitores.
A propaganda passou a ser feita também sem um custo fixado, como em jornais, revistas ou outdoors, o que facilitou aos novos autores anunciar suas histórias em blogs, sites de relacionamento, chats ou em fóruns. Um dos primeiros a entrar no mercado digital no Brasil foi Fábio Yabu, com sua história
"Combo Rangers", que fazia uma série de referências ao universo cultural em que os leitores habituais de quadrinhos já estavam inseridos, e, através disso, levou a uma ótima resposta quanto ao número de leitores e reconhecimento na área. Para auxiliar na divulgação desse material e manter a comunidade leitora da nona arte em contato com todas as notícias e novidades das editoras mais conhecidas e dos personagens mais admirados, surgiram os sites de informação de quadrinhos, como o
Omelete, o
Universo HQ (que completou onze anos esse mês, mas que se estabilizou apropriadamente na década e que foi parabenizado quando completou dez anos de existência já
aqui no blog), além dos estrangeiros
Comics Should Be Good,
Bleeding Cool, entre centenas de outros.
A forma como a informação era transmitida aos leitores de revistas mudou, e o próprio leitor mudou. Passou a dividir sua atenção entre o material impresso e o material digital, o qual oferecia toda uma diversidade de universos jamais vislumbrados antes por quem lia apenas as obras de tinta e papel.
"O Homem-Grilo", do quadrinista Cadu Simões, as
tiras hilárias do cartunista Will Leite,
"Sin Titulo", do estreante Cameron Stewart, e o
blog dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá são alguns dos projetos interessantes que ganharam mais voz e destaque com a adoção do meio digital.
A internet também mudou os quadrinhos de uma forma que ainda é muito discutida: os limites do direito autoral. Não vou adentrar muito nessa discussão agora pois ela é extensa e não tenho enbasamento suficiente no momento para ter uma opinião definitiva sobre o assunto, que vai desde os
creative commons até o download de HQs scaneadas. Entretanto, quero destacar apenas com isso que as grandes editoras perceberam que se não disponibilizassem, e logo, seu próprio material no meio online, iriam perder uma fatia enorme do mercado, além do risco que se concretizou em vários sites de terem seu material digitalizado por terceiros, que causava redução do público que consumia as revistas nas bancas de jornal. A partir dessa procura das grandes editoras, surgiram marcas como a
Comixology, responsável pelo modelo em que foram e estão sendo expostas os quadrinhos da Marvel para aplicativos de Ipod, Ipad e celulares. Baseado num esquema semelhante, a DC também lançou no ano passado seu aplicativo de leitura digital (a digitalização dos quadrinhos das duas gigantes já foi discutida
aqui no blog antes). Isso tudo tem revolucionado o mercado, que vê uma nova forma de distribuição de quadrinhos expandindo à sua frente de uma forma que não é possível controlar todas as suas ramificações.
Foram muitas mudanças, muito rápido, e, portanto, foi uma década MUITO agitada para os quadrinhos. Decorrendo de formas que nem grandes teóricos da área, como Scott McCloud, poderiam antever com detalhes, os quadrinhos vêem surgir um novo horizonte no futuro. Um futuro que se mostra um campo aberto, uma página em branco, para se criar e desenvolver toda sorte de mudanças nesse meio de comunicação, que surgiu de forma despretensiosa há mais de um século, e que cada ano cresce mais e mais, amadurescendo e expandindo todo o seu potencial, que ainda é grande demais para se compreender na atualidade. Não duvido que nos próximos anos, tudo sofrerá ainda mais mudanças do que as que ocorreram nessa década que terminou, e estaremos aqui para poder discutir todo desenrolar e avanço nesse meio artístico e único, como afirmou Ziraldo, que "tem a dinâmica que a leitura visual do século XXI exige".
Uma década terminou, outra se inicia, e a luta continua. Para o alto e avante, homens do amanhã, porque o amanhã se contrói hoje, e este é o tempo de vocês!