sábado, 31 de agosto de 2013

Bienal: Três Doses de Arte

Por Gabriel Guimarães
 

O terceiro dia da Bienal do Livro, na cidade do Rio de Janeiro, foi bastante movimentado. Contando com um público extremamente numeroso, o evento teve o dia marcado pelas longas filas de entrada e saída de vários de seus estandes, dentre os quais se destacam os da editora Saraiva e da Livraria São Marcos, esta última sendo considerada, talvez, um dos grandes pontos de desconto e diversidade de títulos no Pavilhão Verde. A espera, porém, era compensada, uma vez que muitos autores estiveram presentes nos estandes de suas editoras ao longo do dia. Começando o dia com o americano Nicholas Sparks e atravessando a tarde com a brasileira Thalita Rebouças, o público adolescente foi, em geral, o principal privilegiado pelos organizadores do evento. Entretanto, o dia reservou grandes e maravilhosas surpresas para os fãs da arte sequencial também.
 
Gustavo Duarte assinando
"Pavor Espaciar"
Apresentando um movimento considerável, o estande da editora Melhoramentos chamou muita atenção no começo da tarde, graças à presença do quadrinista Maurício de Sousa, que esteve autografando livros lá, ao mesmo tempo em que, no estande da Panini, era realizada a sessão de lançamento oficial do terceiro volume da série Graphic MSP, “Pavor Espaciar”, com a presença do autor da obra, Gustavo Duarte. O ânimo do público foi recompensado com uma recepção calorosa do desenhista e do editor que vem sendo o responsável por essa coleção em particular e por muitos dos recentes lançamentos dos estúdios MSP, Sidney Gusman. Passado um primeiro momento de confusão com relação a aspectos de organização, o fluxo de leitores tendo sua nova aquisição autografada gerou uma grande satisfação e o reconhecimento do trabalho de Duarte foi inquestionável.
 
Kleist durante o worksop
Pouco depois, no estande do país homenageado da edição de 2013 da Bienal, a Alemanha, aconteceu uma série de atividades que atraiu muitos visitantes que passavam por ali. Primeiramente, o quadrinista alemão Reinhard Kleist realizou, em parceria com a ONG C4 – Biblioteca do Parque da Rocinha, um workshop sobre narrativa das histórias em quadrinhos para alunos do Instituto Wark Rocinha, organização sem fins lucrativos que procura oferecer a crianças e jovens do morro da Rocinha a oportunidade de se envolver em projetos envolvendo a criação artística. Organizado pelo editor da 8Inverso Cássio Pantaleoni e o tradutor Eduardo Paim, o workshop foi muito interessante e contou com várias dicas de Kleist a partir de suas experiências pessoais. Logo em seguida, o artista alemão fez um panorama das histórias em quadrinhos na Alemanha, fazendo uma breve introdução sobre os novos nomes do mercado editorial do país, como o cartunista Flix (cujo livro “Quando lá tinha o Muro”, contando pequenos episódios da vida dos alemães antes e depois da queda do Muro de Berlim com um traço cartunesco, foi publicado aqui no Brasil ano passado pela editora Tinta Negra), Ulli Lust (autora cuja obra é, em sua maior parte, baseada em momentos de sua juventude punk, e que esteve no Brasil recentemente), Barbara Yelin (cuja parceria com o Instituto Göethe permitiu que ela viajasse até o Cairo para produzir quadrinhos voltados para a cobertura das revoluções políticas pelas quais passava o Egito nos últimos anos), Arne Bellstorf (cuja obra “Baby’s In Black” aborda a história real do suposto “quinto Beatle”, Stuart Sutcliff, que acompanhou a banda nos seus primeiros anos de existência na década de 1960; foi publicada aqui no Brasil pela editora 8Inverso), dentre muitos outros. Comentando, ainda, sobre as diferenças do estilo de narrativa gráfica germânico para os do resto da Europa, Kleist destacou a referência francesa que a indústria européia carrega e apontou como a arte italiana se concentrava na beleza do traço, no refino dos detalhes, enquanto o processo alemão se focava em estabelecimentos históricos, embasamentos factíveis. Aberto a perguntas, Kleist ainda comentou sobre as mudanças que notara no mercado editorial de quadrinhos na América do Sul, em comparação com a sua última visita anterior, anos antes; as quais ele apontou para uma maior independência do padrão norte-americano, que era, de certa forma, soberano nas prateleiras da nona arte, para uma disponibilidade mais diversificada, adotando muitos títulos europeus e asiáticos nos últimos tempos.
 
Kleist no meio dos alunos do Instituto Wark Rocinha
Ao final do dia, no estande da Devir, ocorreu o aguardado lançamento da edição especial “Combo Rangers – Somos Heróis”, resultado do financiamento colaborativo mais bem sucedido no país até o momento. Escrito por Fábio Yabu e desenhado por Michel Borges, a história traz de volta os personagens que Yabu criara no começo dos anos 2000 (conforme comentamos já em matéria anterior aqui no blog), repaginados para o novo cenário jovem de atualmente. Publicado em parceria com a editora JBC, a edição possui um acabamento bem montado e obteve bons resultados com o público. A meta até o presente momento, é que os personagens protagonizem mais um ou dois volumes a serem publicados em formato graphic novel, mas cujos detalhes ainda não são esclarecidos.

O público teve um dia cheio, sem dúvida, porém, há muito mais ainda pela frente. Continuem nos acompanhando para maiores informações nos próximos dias.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Bienal: Dois Volumes de Vasta Cultura

Por Gabriel Guimarães


No seu segundo dia, a 16ª edição da Bienal do Livro da cidade do Rio de Janeiro manteve o ritmo de sua abertura e contou com um volume de pessoas considerável, ainda que abaixo para uma prévia de final de semana. Uma vez que a divulgação do evento esteve um tanto defasada em relação às suas edições anteriores, muitas pessoas não tomaram ainda conhecimento da realização do evento nas instalações do Rio Centro. A tendência, porém, é que isso seja revertido nos próximos dias, que contarão com a participação de grandes autores do cenário nacional e internacional de literatura e arte sequencial.

Os grandes destaques junto ao público hoje, porém, foram de ordem estética, em função da apresentação com que foram montados. O estande da editora Leya, dentre outros, montou uma réplica em tamanho real do emblemático trono da série de ficção “Game of Thrones”, escrita pelo americano George R. R. Martin, adaptada nos últimos três anos para a televisão pela rede HBO. Os interessados pelos livros, série ou até pela cultura nerd em geral puderam tirar fotos sentados no trono, assumindo expressões de imponência e orgulho. A satisfação dos visitantes com essa atração foi extremamente positiva. Ao mesmo tempo, o estande do Grupo Editorial Record, localizado no mesmo corredor do Pavilhão Azul, ofereceu a chance das pessoas tirarem fotos com uma estátua do protagonista do game “Assassin’s Creed 3”. Aproveitando a grande popularidade que o jogo vem alcançando dentro do Brasil, a Record procurou promover a série de livros baseados nos games da Ubisoft, os quais ela vem publicando nos últimos anos.

No universo dos quadrinhos, fica o destaque para os muitos estandes que oferecem edições da “Turma da Mônica Jovem” e mangás como “One Piece”, “Vagabond” e “Battle Royale” com grande desconto, como é o caso da editora Sampa e a DPL Editora. Outra que se destaca é a Distribuidora Basques, que possui um acervo bastante diversificado, incluindo títulos da série francesa “Asterix” e a graphic novel brasileira “Independência ou Mortos” a preços muito convidativos. Sem dúvida, estes estandes merecem uma visita especial.

Entre as surpresas do evento, aparece a estratégia inovadora do Fluminense Football Club, que possui um estande particular dedicado aos livros publicados sobre o clube, contando com a presença de ex-jogadores importantes, como Assis, e de alguns dos autores cuja obra se encontra disponível nas prateleiras da Bienal, como o escritor e jornalista Valterson Botelho. Para os fãs de futebol, ainda é possível participar de palestras com grandes nomes da rádio e da ficção envolvendo o esporte da bola no pé. Trata-se do espaço Placar Literário, acessível a todos os visitantes no Pavilhão Azul.

Conforme recomendação do nosso parceiro e jornalista Heitor Pitombo, vale também a pena atentar para os estandes da Ática com sua diversidade de títulos produzidos a partir da adaptação de obras literárias para os quadrinhos, com 40% de desconto, e o estande da editora Cultrix, que conta com 30% de desconto em todos os seus livros, dentre os quais, se destaca a obra “O Fantasma de Anya”, de Vera Brosgol, sobre a vida de uma filha de imigrantes russos, que se mudam para os Estados Unidos, e a forma como ela tenta adequar-se cultural e pessoalmente ao seu novo ambiente.

Apesar de muitas experiências positivas até o momento, ainda há muito pela frente, e os próximos dias parecem trazer oportunidades ainda mais maravilhosas. Aguardem mais detalhes.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Bienal: Um Novo Capítulo

Por Gabriel Guimarães
 

Hoje teve início na cidade do Rio de Janeiro a 16ª edição da Bienal do Livro. Após meses de preparo, os estandes das editoras estiveram cheios de novidades e ofertas, o que atraiu muito a atenção dos primeiros visitantes do evento, provenientes, em grande parte, de excursões escolares. Contando com áreas dedicadas às atividades onde serão realizadas palestras e sessões de autógrafos com autores dos mais diversos países, a Bienal pareceu ganhar uma dimensão nova em termos de tamanho. Um desses destaques fica por conta do espaço Mundo Ziraldo, dedicado a apresentar para os mais jovens uma porta de entrada no mundo da leitura nas obras do cartunista mineiro. Com uma área específica para apresentações teatrais e outra ala cujo projeto visa a imersão na obra de Ziraldo, “Flicts”, o espaço realmente cativa visitantes das mais diferentes idades.
 
No Pavilhão Verde, porém, é que se encontram alguns dos principais estandes para os leitores de quadrinhos e admiradores da arte sequencial. Imediatamente em frente a uma de suas portas de entrada, a Comix se tornou referência nas últimas edições do evento por sua diversidade de títulos e oportunidade de encontrar itens das mais diversas vertentes do universo nerd. Este ano, a Comix traz ainda títulos que não possuem tanta circulação no mercado tradicional, como “#Sobreontem”, fanzine preparado pelos quadrinistas que se envolveram com os protestos sociais realizados ao redor de todo o Brasil nas primeiras semanas do mês de julho. Além disso, conta com várias obras de temática instrutiva para quem deseja aprender mais do processo artístico realizado pelos desenhistas das histórias em quadrinhos, dentre os quais se destaca a bela edição “Black White – O Processo Criativo de Eduardo Risso”.
 
Foto do espaço da Devir
Igualmente interessante para os aspirantes a desenhistas e admiradores da boa arte, existe a disponibilidade do livro “Frank Frazetta – Icons”, no estande da Devir, que apresenta um pouco da vida e obra do artistas cujas capas produzidas para a revista “Conan” o consolidaram como um dos mais talentosos ilustradores de sua época. O estande ainda oferece uma boa quantidade de títulos importados de arte sequencial, com destaque para as gigantes Marvel e DC, que valem a pena ser conferidos. Há, também, duas áreas específicas em seu espaço destinadas àqueles que desejarem participar de torneios do jogo de cartas “Magic: The Gathering” ou, até comprarem seus primeiros itens deste segmento.
 
Outro grande destaque fica por conta da editora Nemo, parte do Grupo Autêntica. Contando com descontos que chegam a 25% em seus títulos da série Moebius, o estande tende a se tornar uma área consideravelmente concorrida pelos leitores de quadrinhos europeus. Além disso, a editora ainda oferece outros títulos em quadrinhos bastante interessantes, como adaptações das obras de Shakespeare, em grande parte realizadas por artistas brasileiros, e obras voltadas para públicos mais jovens, como “Força Animal”, da dupla tupiniquim Wellington Srbek e Kris Zullo.
 
No Pavilhão Azul, porém, o grande centro das atenções não ficou com o estande da Panini, como poderia se prever diante dos resultados da última edição da Bienal. O tamanho do estande parece ter sido afetado pela sua organização, e ele parece menor que em 2011. Ainda assim, ele conta com muitos títulos, de vários gêneros, contando, inclusive, com lançamentos como o terceiro título da série Graphic MSP, “Pavor Espaciar”, de Gustavo Duarte. O estande, igualmente, mantém sua tradição de ostentas modelos em tamanho real de alguns de seus personagens publicados. Os escolhidos deste ano foram Ben10, para o público infanto-juvenil, e o Super-Homem, em alusão à sua recente produção para os cinemas. O volume de pessoas que deve preencher esse estande, porém, deve dificultar um pouco a mobilidade e aumentar o tempo de espera nas filas, mas a qualidade do material posto nas prateleiras certamente compensa. Vale ressaltar títulos inéditos até então, como “Tropa dos Lanternas Verdes: O Lado Negro do Verde” e a nova série “Chico Bento Jovem”.
 
Portanto, foi um dia de muitas novidades, que, certamente, serão desdobradas ao longo do evento, mas que, desde já, oferecem oportunidades incríveis para os fãs mais diversos da nona arte. Aguardamos vocês lá!

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Prelúdio de Uma Nova Bienal

Por Gabriel Guimarães


Amanhã, dia 29 de agosto de 2013, terá início a 16ª edição da Bienal do Livro, na cidade do Rio de Janeiro. Tendo obtido grande sucesso em 2009, com particular destaque para os resultados positivos das atividades envolvendo a arte sequencial, o evento comemora também seu 30º aniversário. Tendo tido início nos salões do Hotel Copacabana Palace, em 1983, a Bienal foi gradativamente ganhando atenção, vindo a ocupar os galpões do Rio Centro, que compreendem 55 mil metros quadrados, há mais de uma década. Com o número de visitantes crescendo volumosamente no decorrer do tempo, crescendo de 100 mil, em 2005, para mais de 640 mil, em 2011, o evento proporciona um olhar mais atento para a literatura e as atividades culturais brasileiras e internacionais.

Tendo o costume de homenagear um país diferente em cada uma de suas edições, o protagonista deste ano será a Alemanha, que contará com um estande especializado e diversos autores dos mais variados gêneros. Entre os que estarão presentes, o destaque fica por conta do quadrinista  Reinhard Kleist, que estará fazendo o lançamento oficial de sua mais recente graphic novel lançada no Brasil pela editora 8Inverso, "O Boxeador". Contando ainda com número recorde de autores estrangeiros, o evento trará nomes como o americano Corey May, roteirista da série "Assassin's Creed" para os consoles, o moçambicano Mia Couto, pseudônimo do biólogo António Emilio Leite Couto, e do crítico artístico britânico Will Gompertz.

Outro elemento de destaque na edição deste ano é a relação da literatura com o futebol, para aproveitar o momento prévio ao acontecimento da Copa do Mundo no Brasil ano que vem. Para debater o assunto, haverá uma série de autores renomados no meio como os jornalistas Juca Kfouri e José Trajano, o professor da UFRJ e escritor Muniz Sodré, dentre tantos outros grandes profissionais do mercado livreiro e futebolístico.

Outro ponto importante é a confirmação da primeira versão do Salão de Negócios, espaço dedicado exclusivamente àqueles que trabalham com o livro enquanto objeto de produção. Elemento comum em feiras literárias internacionais, a Bienal deste ano contará com representantes de editoras internacionais e agentes literários renomados para discutir os rumos do mercado editorial e proporcionar um melhor ambiente para o relacionamento entre empresas. Países como Chile, Gana, Alemanha, Canadá e Estados Unidos estarão presentes, além de muitas editoras do cenário tupiniquim.

Portanto, o evento parece guardar grandes novidades e ainda mais oportunidades de saborear a experiência do livro que em suas edições anteriores. Nos dias seguintes, faremos aqui, no Quadrinhos Pra Quem Gosta, a cobertura completa da XVI Bienal do Livro e convidamos você, leitor, a aproveitar todas as nuances oferecidas pelos organizadores do evento de perto, ao nosso lado. Nos vemos por lá!

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Uma (Não Tão) Breve Visão do Potencial Expressivo das Histórias em Quadrinhos

Por Gabriel Guimarães


Mais que uma indústria, as histórias em quadrinhos representam um modo de expressão válido de observação minuciosa e considerações apropriadas. Observando atentamente as etapas de sua história enquanto ferramenta sociocultural, é fascinante constatar as potencialidades que o meio possui e as formas inovadoras e instigantes encontradas por diversos artistas ao longo de sua existência para reproduzir suas mensagens particulares. Acompanhemos, então, uma jornada histórica e sociologicamente importante para se compreender o assunto.

Desde os primórdios da nossa existência, a raça humana protagonizou uma jornada de autoconhecimento para aprender sobre suas capacidades e limitações. Através das percepções do ambiente em que estavam inseridos, os primeiros indivíduos puderam descobrir noções que, muito tempo depois, viriam a se tornar universais, como a lei de Newton sobre ação e reação (causa e consequência) e a lei da sobrevivência do mais apto, atribuída a Darwin. Ainda que estas constatações tenham tido uma origem visceral e rudimentar, os seres humanos também estiveram submetidos a certos aspectos externos à sua própria consciência, os quais desempenharam papéis de importância imperiosa na sua compreensão particular enquanto ser pensante. A comunicação é um destes fatores. De grunhidos a urros, a humanidade foi aprendendo a compartilhar entre seus semelhantes o testemunho particular de determinados eventos, a fim de evitar cometer erros passados e permitir uma sobrevivência mais fácil para o coletivo. Então, surgiu a escrita.
 

Exemplo de escrita cuneiforme
Diferente da estrutura que possui hoje e das suas múltiplas facetas ao redor do planeta, a origem da palavra escrita reside no objetivo de representar um determinado som que continha um significado para que outros pudessem compreendê-lo mesmo sem estar presentes quando a mensagem original era transmitida. Inicialmente pictórica, a arte rupestre trazia lições dos períodos de caça e da gestão das sociedades primitivas, auxiliando o processo de construção de um convívio pacífico e harmônico. Com o tempo, a humanidade aprimorou não apenas suas habilidades laborais, que facilitaram sua sobrevivência, como também permitiu especificidades na sua forma de expressar seus conhecimentos, que passavam a transcender a mera prática e começava a migrar para um campo mais simbólico da essência humana. Os hieróglifos egípcios e a escrita cuneiforme, desenvolvida pelos sumérios, são considerados, hoje, as primeiras representações desse tipo de expressividade desassociada de eventos físicos propriamente ditos. Os pictogramas que compunham essas linguagens, inicialmente de formato diferenciado para cada indivíduo, então, começavam a adquirir formas mais fixas, sendo adotadas por diversos povos ao redor da Mesopotâmia, encontrando apenas alguma resistência entre os povos do Leste Asiático, que já haviam desenvolvido um sistema de língua próprio da região, denominado de língua semítica (termo este de certo debate entre os etimólogos por conta de suas variações, desde o aramaico e o hebraico até o árabe e o acadiano).
 
Representação das etapas necessárias para
a confecção da folha de papel original
Com o passar do tempo, a língua foi adquirindo tons particulares de cada região em que era utilizada, dando nascimento, dessa forma, a muitos idiomas que, posteriormente, adquiririam o formato com que são observados hoje. A plataforma em que a escrita se dava igualmente sofreu mudanças, passando das paredes de cavernas para a argila, o barro e até em materiais de origem óssea. Mediante a necessidade de registro para o comércio e a gestão dos primeiros Estados criados pelas sociedades humanas, foram surgindo, eventualmente, novas formas de armazenar o conteúdo escrito, desenvolvendo-se instrumentos dedicados a este propósito, como os pergaminhos, os códices, os papiros e, por final, o papel. Desenvolvido na China pelo funcionário da corte imperial Cai Lun, também conhecido como Ts'ai Lun, o papel originalmente produzido a partir da polpação das redes de pesca para depois passar a ser composto de fibras vegetais, se mostrou uma das formas mais seguras de assegurar a manutenção dos escritos, e foi adotado como padrão ao redor de todo o planeta.
 
Pode parecer um tanto detalhista demais observar este panorama histórico da escrita, porém, é importante destacar a grande importância da função desempenhada por essa atividade. A história da humanidade é incrivelmente vasta e cheia de momentos de saltos tecnológicos que mudaram a maneira como se vivia até então, porém, é praticamente unânime entre os historiadores a relevância que o desenvolvimento de uma forma de expressão teve em termos de permitir ao homem começar a sair da terra batida de lama para assumir uma posição imponente diante da natureza, enquanto seu maior transformador. Uma questão, entretanto, é extremamente importante de destacar: a necessidade do homem em se fazer compreender pelos seus semelhantes.
 

Eadrweard Muybridge e um de seus estudos
sobre a composição da imagem
em movimento

A sociedade avançou muito desde que as línguas se tornaram elemento de identificação regional e as formas de manutenção destas se aprimorou a ponto de permitir guardar registros milenares de indivíduos há muito tempo finados para novas gerações de indivíduos que poderiam vir a aprender com aqueles. Ainda assim, a necessidade de se expressar, de ser compreendido por outros seres, continuou presente no cerne do homem. Novos meios para fazer isso foram surgindo, com a arte adquirindo seu auge histórico no período da Renascença e administrando uma comunicação visual que se manteria soberana até o surgimento dos primeiros dispositivos de registro pictórico por meio da captação da luz sobre as pessoas, no final do século XIX. Desde então, esse registro evoluiu para outras formas de capturar as expressões do homem, físicas e emocionais, como a captura do áudio realizada por cientistas como Guglielmo Marconi, Thomas Edison, David E. Hughes e Nikola Tesla; e a construção de imagens de efeito contínuo, que davam a impressão de movimento, cujas técnicas eram desenvolvidas por Eadweard Muybridge, os irmãos Auguste e Louis Lumière, e William Kennedy Dickson. Mesmo com todos esses processos sendo desenvolvidos para expandir a voz e a presença da mensagem humana, haviam nuances e sentimentos que extrapolavam as limitações do discurso direto, havendo aqueles que recorressem às imagens pictóricas para conseguir alcançar o seu objetivo original.

Exemplo do trabalho do suíço Rodolphe
Töpffer, um dos precursores das
histórias em quadrinhos no século XIX
E, então, as narrativas gráficas começaram a ganhar forma. Com o trabalho de habilidosos profissionais como o alemão Wilhelm Busch, o suíço Rudolphe Töpffer e o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini, a estrutura de expressão gráfica aliada a um acompanhamento textual foi evoluindo, até encontrar, no trabalho do norte-americano Richard Outcault, o berço de um novo meio de comunicação de massa - as histórias em quadrinhos. Deixando os aspectos mercadológicos e comerciais para uma abordagem mais detalhada em outra ocasião, os aspectos semióticos desse formato adquiriram significados especiais ao longo dos anos, dando vida aos pensamentos e devaneios de seus mais diversos autores. A expressividade que essa mídia oferecia, entretanto, não se limita apenas ao contexto em que o conteúdo das mensagens é desenvolvido, indo além para representar uma grande parcela na repercussão que essa composição tem junto aos seus receptores. O filósofo francês Gilles Deleuze aponta que vivemos em uma sociedade imagética onde as ferramentas comunicacionais funcionam de acordo com um pretexto de uniformização dos discursos para que estes sejam inteligíveis socialmente; ainda assim, ele ressalta que, dentro das imagens, há uma pluralidade de sentidos cujo resultado depende do próprio receptor desta para dar-lhe sentido. A expressão de uma imagem contém, portanto, tanto as vertentes daquele que a cria quanto daquele que a consome. O mesmo vale para as histórias em quadrinhos; mesmo que se trate de uma narrativa, em sua maioria, fechada, com personagens estabelecidos e eventos narrados de forma a compor uma estrutura cronológica compreensível, a narrativa gráfica depende muito daquilo que os autores têm a dizer, e do que os leitores têm a assimilar.

Exemplo da expressividade desenvolvida por
Eisner em uma página de modelo, que
produziu para seu livro "Quadrinhos e
Arte Sequencial"
Os norte-americanos Will Eisner e Scott McCloud foram alguns dos que procuraram estudar a origem expressiva das histórias em quadrinhos, enquanto ferramentas sociais de comunicação. Em suas respectivas obras, eles observaram a origem arcaica das pinturas rupestres e a evolução da expressão por meio de ilustrações, atravessando os séculos e passando pelas mais diversas culturas. Para eles, o potencial expressivo dos quadrinhos podia apenas ser limitado à capacidade particular daqueles que tomavam seus instrumentos como ferramentas para compor suas mensagens. Esse discurso encontrou alguma resistência nos estudos de alguns sociólogos, como os alemães Walter Benjamin e Theodore Adorno, que apontavam para a perda da aura artística em função da reprodução massificada das obras de arte no começo do século XX. Eles implicavam que a composição de uma obra para consumo desmedido provocaria uma perda irreparável no ato de testemunhar um material original em sua plenitude; a expressão máxima da arte perderia, dessa forma, seu maior grau de validação: sua autenticidade absoluta, tanto em termos de produção do espírito humano quanto de composição de experiência social.

A resistência especificamente contra os quadrinhos encontraram voz no psicólogo germano-americano Frederic Wertham, cujo trabalho não se concentrava na expressão da narrativa gráfica em si, mas na transmissão de ensinamentos que considerava alarmantes através das revistas vendidas na primeira metade do século XX. Um dos maiores adeptos do conceito de indústria cultural apresentado por Adorno e Horkheimer, Wertham incitou o pânico entre os cidadãos mais conservadores da sociedade norte-americana, ganhando voz em outros países através da tradução de seus artigos, provocando um período de censura como jamais se vira antes para este meio de comunicação. A propriedade expressiva dos quadrinhos sofreu um grande baque, precisando se submeter a selos de adequação quanto a determinados princípios considerados universalmente aceitos, como o Comics Code da Associação de Editores de Revistas em Quadrinhos (Association of Comics Magazine Publishers - A.C.M.P.) e, posteriormente, o polêmico Comics Code Authority (nota: ainda pretendemos trabalhar a história acerca desse selo mais detalhadamente no futuro, então, nos restringiremos aqui apenas à sua menção).

Apesar de todos esses obstáculos, a livre expressão prevaleceu, permitindo aos quadrinhos serem ferramentas de recursos únicos para aqueles que se dispusessem a utilizá-los como mídia. O já mencionado Eisner foi um dos grandes pioneiros no aprimoramento dos recursos característicos do próprio formato da arte sequencial para poder transmitir noções, compondo, assim, toda uma nova forma de transmitir ideias, sentimentos e histórias. Mediante as características que qualificam determinado conteúdo como uma história em quadrinhos - a apresentação de imagens pictóricas sequenciadas a fim de construir um elo que as une através da percepção do seu leitor, aliada ao recurso do uso da palavra escrita para expandir e aprofundar o contexto que o autor procura transmitir são os mais básicos, unindo as propriedades gráficas e textuais da comunicação humana como nenhum outro meio o faz - surgiu toda uma gama de possibilidades de abordagem. Utilizando elementos igualmente comuns à maioria das histórias como o tamanho dos requadros, a dimensão da sarjeta (área entre os quadrinhos de uma página) e o formato particular dos balões, autores de ao redor do mundo inteiro viram ali uma forma de se expressar.

Página de "O Paraíso de Zahra" sobre os movimentos estudantis
que aconteceram no Irã
Ainda que, conforme o semiólogo francês Roland Barthes tenha aferido à existência da linguagem um paradoxo de permitir expressar o âmago dos ideais humanos, também expressa a limitação semântica de não poder romper com suas próprias regras de regência ortográfica, a linguagem dos quadrinhos ofereceu a muitas vozes, outrora fadadas ao esquecimento, a oportunidade de se expor, de mostrar suas perspectivas particulares do mundo em que vivem, do tempo e da cultura em que estão inseridas. Seja pela delicada ponderação sobre a vida adulta, do ponto de vista daqueles que começam a dar seus primeiros passos nessa jornada, como em "Solanin", do japonês Inio Asano (cuja obra foi comentada aqui antes), ou a denúncia efusiva contra as normas que regem a estrutura de uma sociedade e uma cultura, como em "O Paraíso de Zahra", dos iranianos Khalil e Amir; seja na singela apresentação do valor das amizades, como em "Laços", feita pelos irmãos brasileiros Vitor e Luciana Caffagi (que também foi comentada aqui), ou então na mera exposição de eventos que as grandes mídias apenas cobrem a superficialidade de conflitos étnicos e religiosos, como em várias obras do jornalista americano Joe Sacco.
 
Como destacou o sociólogo e aposentado professor da Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro, Moacy Cirne, "os quadrinhos são criativos e merecedores do nosso respeito artístico e intelectual não [apenas] pela possível profundidade  (filosófica, literária, "humana", etc.) desse ou daquele personagem, mas por uma série de procedimentos semióticos no cerne da própria linguagem quadrinística.", o que é complementado pelo professor de Letras da USP, Paulo Ramos, que aponta que "ler quadrinhos é ler sua linguagem. Dominá-la, mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição para a plena compreensão da história [completa] e para a aplicação dos quadrinhos em salas de aula e em pesquisas científicas sobre o assunto."
 
 
As histórias em quadrinhos, portanto, nos oferecem uma nova forma de apresentar o mundo por nossos olhos e mentes a outros, que, de outra forma, não teriam compreensão plena da mensagem que desejamos transmitir. O potencial comunicacional e expressivo da nona arte se torna claro e suas mais diversas facetas, objeto de análise admirável. O assunto permite uma discussão muito maior e abrangente, porém, a exposição de certos elementos-chave e contextualizações necessárias são extremamente importantes para tal finalidade. Que essa apresentação possa ter esclarecido um pouco das origens acerca da expressividade que esse meio de comunicação possui, e que as vertentes de abordagens dos recursos da arte sequencial possam frutificar em quantidade e qualidade cada vez crescente, na construção de nossas identidades socioculturais naturalmente.