quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Uma (Não Tão) Breve Visão do Potencial Expressivo das Histórias em Quadrinhos

Por Gabriel Guimarães


Mais que uma indústria, as histórias em quadrinhos representam um modo de expressão válido de observação minuciosa e considerações apropriadas. Observando atentamente as etapas de sua história enquanto ferramenta sociocultural, é fascinante constatar as potencialidades que o meio possui e as formas inovadoras e instigantes encontradas por diversos artistas ao longo de sua existência para reproduzir suas mensagens particulares. Acompanhemos, então, uma jornada histórica e sociologicamente importante para se compreender o assunto.

Desde os primórdios da nossa existência, a raça humana protagonizou uma jornada de autoconhecimento para aprender sobre suas capacidades e limitações. Através das percepções do ambiente em que estavam inseridos, os primeiros indivíduos puderam descobrir noções que, muito tempo depois, viriam a se tornar universais, como a lei de Newton sobre ação e reação (causa e consequência) e a lei da sobrevivência do mais apto, atribuída a Darwin. Ainda que estas constatações tenham tido uma origem visceral e rudimentar, os seres humanos também estiveram submetidos a certos aspectos externos à sua própria consciência, os quais desempenharam papéis de importância imperiosa na sua compreensão particular enquanto ser pensante. A comunicação é um destes fatores. De grunhidos a urros, a humanidade foi aprendendo a compartilhar entre seus semelhantes o testemunho particular de determinados eventos, a fim de evitar cometer erros passados e permitir uma sobrevivência mais fácil para o coletivo. Então, surgiu a escrita.
 

Exemplo de escrita cuneiforme
Diferente da estrutura que possui hoje e das suas múltiplas facetas ao redor do planeta, a origem da palavra escrita reside no objetivo de representar um determinado som que continha um significado para que outros pudessem compreendê-lo mesmo sem estar presentes quando a mensagem original era transmitida. Inicialmente pictórica, a arte rupestre trazia lições dos períodos de caça e da gestão das sociedades primitivas, auxiliando o processo de construção de um convívio pacífico e harmônico. Com o tempo, a humanidade aprimorou não apenas suas habilidades laborais, que facilitaram sua sobrevivência, como também permitiu especificidades na sua forma de expressar seus conhecimentos, que passavam a transcender a mera prática e começava a migrar para um campo mais simbólico da essência humana. Os hieróglifos egípcios e a escrita cuneiforme, desenvolvida pelos sumérios, são considerados, hoje, as primeiras representações desse tipo de expressividade desassociada de eventos físicos propriamente ditos. Os pictogramas que compunham essas linguagens, inicialmente de formato diferenciado para cada indivíduo, então, começavam a adquirir formas mais fixas, sendo adotadas por diversos povos ao redor da Mesopotâmia, encontrando apenas alguma resistência entre os povos do Leste Asiático, que já haviam desenvolvido um sistema de língua próprio da região, denominado de língua semítica (termo este de certo debate entre os etimólogos por conta de suas variações, desde o aramaico e o hebraico até o árabe e o acadiano).
 
Representação das etapas necessárias para
a confecção da folha de papel original
Com o passar do tempo, a língua foi adquirindo tons particulares de cada região em que era utilizada, dando nascimento, dessa forma, a muitos idiomas que, posteriormente, adquiririam o formato com que são observados hoje. A plataforma em que a escrita se dava igualmente sofreu mudanças, passando das paredes de cavernas para a argila, o barro e até em materiais de origem óssea. Mediante a necessidade de registro para o comércio e a gestão dos primeiros Estados criados pelas sociedades humanas, foram surgindo, eventualmente, novas formas de armazenar o conteúdo escrito, desenvolvendo-se instrumentos dedicados a este propósito, como os pergaminhos, os códices, os papiros e, por final, o papel. Desenvolvido na China pelo funcionário da corte imperial Cai Lun, também conhecido como Ts'ai Lun, o papel originalmente produzido a partir da polpação das redes de pesca para depois passar a ser composto de fibras vegetais, se mostrou uma das formas mais seguras de assegurar a manutenção dos escritos, e foi adotado como padrão ao redor de todo o planeta.
 
Pode parecer um tanto detalhista demais observar este panorama histórico da escrita, porém, é importante destacar a grande importância da função desempenhada por essa atividade. A história da humanidade é incrivelmente vasta e cheia de momentos de saltos tecnológicos que mudaram a maneira como se vivia até então, porém, é praticamente unânime entre os historiadores a relevância que o desenvolvimento de uma forma de expressão teve em termos de permitir ao homem começar a sair da terra batida de lama para assumir uma posição imponente diante da natureza, enquanto seu maior transformador. Uma questão, entretanto, é extremamente importante de destacar: a necessidade do homem em se fazer compreender pelos seus semelhantes.
 

Eadrweard Muybridge e um de seus estudos
sobre a composição da imagem
em movimento

A sociedade avançou muito desde que as línguas se tornaram elemento de identificação regional e as formas de manutenção destas se aprimorou a ponto de permitir guardar registros milenares de indivíduos há muito tempo finados para novas gerações de indivíduos que poderiam vir a aprender com aqueles. Ainda assim, a necessidade de se expressar, de ser compreendido por outros seres, continuou presente no cerne do homem. Novos meios para fazer isso foram surgindo, com a arte adquirindo seu auge histórico no período da Renascença e administrando uma comunicação visual que se manteria soberana até o surgimento dos primeiros dispositivos de registro pictórico por meio da captação da luz sobre as pessoas, no final do século XIX. Desde então, esse registro evoluiu para outras formas de capturar as expressões do homem, físicas e emocionais, como a captura do áudio realizada por cientistas como Guglielmo Marconi, Thomas Edison, David E. Hughes e Nikola Tesla; e a construção de imagens de efeito contínuo, que davam a impressão de movimento, cujas técnicas eram desenvolvidas por Eadweard Muybridge, os irmãos Auguste e Louis Lumière, e William Kennedy Dickson. Mesmo com todos esses processos sendo desenvolvidos para expandir a voz e a presença da mensagem humana, haviam nuances e sentimentos que extrapolavam as limitações do discurso direto, havendo aqueles que recorressem às imagens pictóricas para conseguir alcançar o seu objetivo original.

Exemplo do trabalho do suíço Rodolphe
Töpffer, um dos precursores das
histórias em quadrinhos no século XIX
E, então, as narrativas gráficas começaram a ganhar forma. Com o trabalho de habilidosos profissionais como o alemão Wilhelm Busch, o suíço Rudolphe Töpffer e o ítalo-brasileiro Ângelo Agostini, a estrutura de expressão gráfica aliada a um acompanhamento textual foi evoluindo, até encontrar, no trabalho do norte-americano Richard Outcault, o berço de um novo meio de comunicação de massa - as histórias em quadrinhos. Deixando os aspectos mercadológicos e comerciais para uma abordagem mais detalhada em outra ocasião, os aspectos semióticos desse formato adquiriram significados especiais ao longo dos anos, dando vida aos pensamentos e devaneios de seus mais diversos autores. A expressividade que essa mídia oferecia, entretanto, não se limita apenas ao contexto em que o conteúdo das mensagens é desenvolvido, indo além para representar uma grande parcela na repercussão que essa composição tem junto aos seus receptores. O filósofo francês Gilles Deleuze aponta que vivemos em uma sociedade imagética onde as ferramentas comunicacionais funcionam de acordo com um pretexto de uniformização dos discursos para que estes sejam inteligíveis socialmente; ainda assim, ele ressalta que, dentro das imagens, há uma pluralidade de sentidos cujo resultado depende do próprio receptor desta para dar-lhe sentido. A expressão de uma imagem contém, portanto, tanto as vertentes daquele que a cria quanto daquele que a consome. O mesmo vale para as histórias em quadrinhos; mesmo que se trate de uma narrativa, em sua maioria, fechada, com personagens estabelecidos e eventos narrados de forma a compor uma estrutura cronológica compreensível, a narrativa gráfica depende muito daquilo que os autores têm a dizer, e do que os leitores têm a assimilar.

Exemplo da expressividade desenvolvida por
Eisner em uma página de modelo, que
produziu para seu livro "Quadrinhos e
Arte Sequencial"
Os norte-americanos Will Eisner e Scott McCloud foram alguns dos que procuraram estudar a origem expressiva das histórias em quadrinhos, enquanto ferramentas sociais de comunicação. Em suas respectivas obras, eles observaram a origem arcaica das pinturas rupestres e a evolução da expressão por meio de ilustrações, atravessando os séculos e passando pelas mais diversas culturas. Para eles, o potencial expressivo dos quadrinhos podia apenas ser limitado à capacidade particular daqueles que tomavam seus instrumentos como ferramentas para compor suas mensagens. Esse discurso encontrou alguma resistência nos estudos de alguns sociólogos, como os alemães Walter Benjamin e Theodore Adorno, que apontavam para a perda da aura artística em função da reprodução massificada das obras de arte no começo do século XX. Eles implicavam que a composição de uma obra para consumo desmedido provocaria uma perda irreparável no ato de testemunhar um material original em sua plenitude; a expressão máxima da arte perderia, dessa forma, seu maior grau de validação: sua autenticidade absoluta, tanto em termos de produção do espírito humano quanto de composição de experiência social.

A resistência especificamente contra os quadrinhos encontraram voz no psicólogo germano-americano Frederic Wertham, cujo trabalho não se concentrava na expressão da narrativa gráfica em si, mas na transmissão de ensinamentos que considerava alarmantes através das revistas vendidas na primeira metade do século XX. Um dos maiores adeptos do conceito de indústria cultural apresentado por Adorno e Horkheimer, Wertham incitou o pânico entre os cidadãos mais conservadores da sociedade norte-americana, ganhando voz em outros países através da tradução de seus artigos, provocando um período de censura como jamais se vira antes para este meio de comunicação. A propriedade expressiva dos quadrinhos sofreu um grande baque, precisando se submeter a selos de adequação quanto a determinados princípios considerados universalmente aceitos, como o Comics Code da Associação de Editores de Revistas em Quadrinhos (Association of Comics Magazine Publishers - A.C.M.P.) e, posteriormente, o polêmico Comics Code Authority (nota: ainda pretendemos trabalhar a história acerca desse selo mais detalhadamente no futuro, então, nos restringiremos aqui apenas à sua menção).

Apesar de todos esses obstáculos, a livre expressão prevaleceu, permitindo aos quadrinhos serem ferramentas de recursos únicos para aqueles que se dispusessem a utilizá-los como mídia. O já mencionado Eisner foi um dos grandes pioneiros no aprimoramento dos recursos característicos do próprio formato da arte sequencial para poder transmitir noções, compondo, assim, toda uma nova forma de transmitir ideias, sentimentos e histórias. Mediante as características que qualificam determinado conteúdo como uma história em quadrinhos - a apresentação de imagens pictóricas sequenciadas a fim de construir um elo que as une através da percepção do seu leitor, aliada ao recurso do uso da palavra escrita para expandir e aprofundar o contexto que o autor procura transmitir são os mais básicos, unindo as propriedades gráficas e textuais da comunicação humana como nenhum outro meio o faz - surgiu toda uma gama de possibilidades de abordagem. Utilizando elementos igualmente comuns à maioria das histórias como o tamanho dos requadros, a dimensão da sarjeta (área entre os quadrinhos de uma página) e o formato particular dos balões, autores de ao redor do mundo inteiro viram ali uma forma de se expressar.

Página de "O Paraíso de Zahra" sobre os movimentos estudantis
que aconteceram no Irã
Ainda que, conforme o semiólogo francês Roland Barthes tenha aferido à existência da linguagem um paradoxo de permitir expressar o âmago dos ideais humanos, também expressa a limitação semântica de não poder romper com suas próprias regras de regência ortográfica, a linguagem dos quadrinhos ofereceu a muitas vozes, outrora fadadas ao esquecimento, a oportunidade de se expor, de mostrar suas perspectivas particulares do mundo em que vivem, do tempo e da cultura em que estão inseridas. Seja pela delicada ponderação sobre a vida adulta, do ponto de vista daqueles que começam a dar seus primeiros passos nessa jornada, como em "Solanin", do japonês Inio Asano (cuja obra foi comentada aqui antes), ou a denúncia efusiva contra as normas que regem a estrutura de uma sociedade e uma cultura, como em "O Paraíso de Zahra", dos iranianos Khalil e Amir; seja na singela apresentação do valor das amizades, como em "Laços", feita pelos irmãos brasileiros Vitor e Luciana Caffagi (que também foi comentada aqui), ou então na mera exposição de eventos que as grandes mídias apenas cobrem a superficialidade de conflitos étnicos e religiosos, como em várias obras do jornalista americano Joe Sacco.
 
Como destacou o sociólogo e aposentado professor da Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro, Moacy Cirne, "os quadrinhos são criativos e merecedores do nosso respeito artístico e intelectual não [apenas] pela possível profundidade  (filosófica, literária, "humana", etc.) desse ou daquele personagem, mas por uma série de procedimentos semióticos no cerne da própria linguagem quadrinística.", o que é complementado pelo professor de Letras da USP, Paulo Ramos, que aponta que "ler quadrinhos é ler sua linguagem. Dominá-la, mesmo que em seus conceitos mais básicos, é condição para a plena compreensão da história [completa] e para a aplicação dos quadrinhos em salas de aula e em pesquisas científicas sobre o assunto."
 
 
As histórias em quadrinhos, portanto, nos oferecem uma nova forma de apresentar o mundo por nossos olhos e mentes a outros, que, de outra forma, não teriam compreensão plena da mensagem que desejamos transmitir. O potencial comunicacional e expressivo da nona arte se torna claro e suas mais diversas facetas, objeto de análise admirável. O assunto permite uma discussão muito maior e abrangente, porém, a exposição de certos elementos-chave e contextualizações necessárias são extremamente importantes para tal finalidade. Que essa apresentação possa ter esclarecido um pouco das origens acerca da expressividade que esse meio de comunicação possui, e que as vertentes de abordagens dos recursos da arte sequencial possam frutificar em quantidade e qualidade cada vez crescente, na construção de nossas identidades socioculturais naturalmente.

Um comentário:

Junior Vondrake disse...

Texto muito bom.
Realmente os quadrinhos trazem uma nova forma, por assim dizer, registrar histórias que refletem a história humana.
Uns contento obras realísticas (e ótimas para estudos como as de Will Eisner), outras dos clássicos heróis. Todas eles refletem nossas heranças mitológicas, nossa sociedade, estado mental, dentre outras coisas que compõem o ser humano. Hoje em dia, para você ter ideia, já se usa até os quadrinhos de heróis para abordar temas do nosso cotidiano, sejam esses heróis simples humanos (como o Batman, Arqueiro Verde, dentre outros) ou extraterrestres (como Super-Homem, Thor, etc).