domingo, 30 de agosto de 2009

Psicologia e Histórias em Quadrinhos: Dilbert, Recruta Zero, Calvin e a Formação de Corpos Dóceis

Por Gabriel Guimarães

  1. A irreverência dos quadrinhos de humor e breve histórico do gênero
    “O humorismo alivia-nos das vicissitudes da vida, ativando o nosso senso de proporção e revelando-nos que a seriedade exagerada tende ao absurdo.” (Charles Chaplin)

Para se fazer uma boa análise do surgimento e irreverência das histórias em quadrinhos de humor, é preciso remetermo-nos ao século XIX, época de extrema importância para os meios de comunicação como os vemos hoje, pois foi durante ele que ocorreu a consolidação do capitalismo e a consequente expansão populacional dos grandes centros, modificando a estrutura das grandes cidades e a imprensa.

Ocorre então uma enorme mudança nos códigos e regras próprios da sociedade, devido à heterogeneidade das pessoas que passaram a constituir a população trabalhadora, caracterizando um novo tipo de cultura, não mais burguês e elitista, mas de mercado. “Essa cultura de massa surge como uma cultura de lazer, de entretenimento, que busca o lucro e que depende de certas tecnologias para existir e poder alcançar seu público. A relação pessoal é substituída por um meio técnico de comunicação à distância, impessoal e aberto, capaz de atingir milhares, ou milhões de pessoas.” (FEIJÓ, 1997). Não é à toa que é nessa época que surgem tantas referências no meio cultural que estão até hoje marcadas em nossas vidas, com destaque para o surgimento do cinema dos irmãos Lumiére, para os escritores de livros que tiravam da carência de material de distração no retorno dos operários para casa ao final do dia sua motivação para escrever, como H. G. Wells, e para o início da publicação de histórias em quadrinhos nos jornais norte-americanos.

E foi no dia 5 de maio de 1895, que foi publicada no jornal New York World a primeira história em quadrinhos da história, Down Hogan’s Alley, de Richard Outcault, cuja principal figura era um menino de aparência asiática que usava uma vestimenta amarela que lhe cobria quase todo o corpo, considerado por muitos como o primeiro personagem do gênero quadrinhos. Por não ter um nome definido, foi posteriormente apelidado pelo público de Menino Amarelo. Aí começava já a irreverência dos quadrinhos, uma vez que mostrava o ingresso das novas etnias ao mosaico cultural norte-americano (PATATI e BRAGA, 2006), evidenciando que a divulgação da cultura agora era para todos os habitantes dos grandes centros, e não mais apenas à burguesia dominante.

Esse novo tipo de publicação indignou tanto os integrantes dessa classe ‘superior’, que estes criaram a expressão Imprensa Amarela’, para identificar o jornalismo sensacionalista que buscava o lucro rápido e resposta do público.

Vendo o sucesso que essas tiras cômicas faziam, os demais jornais e editoras começaram a buscar mais desse material para publicarem, gerando assim um boom na criação de quadrinhos de humor, como Os Sobrinhos do Capitão (1897), Upside Downs (1903), Mutt e Jeff (1907), Krazy Kat (1913), Pafúncio e Marocas (1913), e O Gato Félix (1923).

Conforme o tempo passou, os quadrinhos foram ficando mais sérios, tendo suas narrativas muitas vezes ligadas às guerras reais, fictícias, ou ideológicas que aconteciam no mundo, como a figura do colonizador britânico nas terras africanas em Tarzã (1929), ou a batalha na Segunda Guerra Mundial travada em Terry and the Pirates (1934). Esse modo mais realista de ver o mundo nos quadrinhos influenciou muito as tiras cômicas, que passaram a ter um caráter mais crítico com relação ao modo como era gerida a sociedade capitalista e as suas figuras de autoridade, como foram os casos de Pinduca (1932), O Reizinho (1934), e Ferdinando (1934). Este último, inclusive, teve tanto retorno do público, que seu autor, Al Capp, chegou a ter sua importância comparada com a de D. W. Griffith nos cinemas e a de Gershwin no jazz (MOYA, 1987).

E o gênero cômico foi crescendo, se ramificando em diversas criações que iam surgindo, mas nenhuma que chamasse muita atenção, até que na prancheta de Mort Walker, em 1950, surge Zero, um universitário que não se dava bem com as figuras de controle em sua vida, mas que um ano depois iria se alistar no exército americano pela Guerra da Coréia, tornando-se então um dos mais famosos personagens de humor de todos os tempos.

  1. Recruta Zero e a idealização do modelo soldado

Poucos sabem, mas o personagem Zero existia antes mesmo de se alistar. Ele só veio a fazê-lo quando os Estados Unidos ingressaram na Guerra da Coréia em 1951, para tentar alavancar o espírito de servir o país nos seus leitores, uma vez percebida a influência das suas tiras nestes, o que é curioso, uma vez que sua atitude contestadora sempre esteve na síntese do seu modo de ser.

Em suas tiras, podem-se notar nitidamente a busca pela total submissão do indivíduo para que o poder seja exercido sem nenhuma resistência, tal qual ocorreria na formação de corpos dóceis proposta por Deleuze. A conscientização da supressão das vontades momentâneas, ou sacrifício atual, para uma recompensa posterior na vida também estava presente nas suas tirinhas desde seu surgimento, como pode ser visto na tirinha abaixo:

Uma vez alistado, Zero apenas mudou seu foco de desatenção, e ao invés de lidar com a autoridade professoral desencarnada, passa a encarar na figura do Sargento Tainha seu nêmese de trabalho obrigatório. Em ambas com a ciência de sua dívida eterna para com a sociedade, porém prorrogando sua cobrança até onde puder, tal qual ocorre nas sociedades de controle.

No exército, Zero encontra o que Foucault afirmara ser fontes de repressão constante, que penalizavam o campo indefinido do não-conforme com base nas micropenalidades de tempo (seus regulares atrasos na hora de levantar ou de realizar alguma tarefa), de atividade (sua constante desatenção e falta de cuidado), de maneira de ser (sua atitude de desobediência pela preguiça), de discurso (sua insolência entranhada), e de padronização do corpo (manchas e lama em seu uniforme).

Por nunca conseguir cumprir sua função de corretivo pela mecânica do castigo, Zero sempre permaneceu inerte às ordens que lhe eram dadas, se tornando o padrão do não-soldado americano. O exército americano que consumia suas tirinhas nas trincheiras coreanas passaram a se incomodar com aquela imagem de preguiça e desatenção passada para o público consumidor nos Estados Unidos, o que levou ao banimento dessas HQs de todos os quartéis quatro anos depois de sua criação.

As tiras do Recruta Zero foram apenas uma das que não lidavam bem com a figura de controle à qual os personagens eram impostos, esta se ampliando para todos os setores da vida social cotidiana, desde a relação dos laços familiares em Calvin (1985), das expectativas sociais impregnadas entre as classes profissionais em Hagar, o Horrível (1979), até as relações de empresa demonstradas em Dilbert (1989).

  1. Calvin e a (in)formalização do modelo familiar

Nomeado a partir de João Calvino, criador da doutrina calvinista e forte defensor do predestinismo, o qual é diversas vezes mencionado nas histórias, o personagem Calvin é uma criança de seis anos impulsiva, insubordinada, rabugenta, porém muito inteligente, questionadora e de imaginação muito fértil, em vista das suas intrépidas aventuras ao lado do seu tigre de pelúcia que ele vê como real, Haroldo. Sua principal c

aracterística talvez seja sua contestação com o que é feito no mundo apesar de ele viver em seu próprio mundo imaginário a maior parte do tempo.

Como pode ser visto na tirinha acima, a resposta do pai rompe com o que antigamente seria padrão natural de resposta – que essa ordem de dormir mais ce

do deveria-se ao fato de que seria melhor para a saúde de Calvin –, evidenciando a passagem da sociedade de disciplina, onde as ordens eram justificadas individualmente, para a sociedade de controle, onde é instigada a obediência hierárquica pura, isto é, o cumprimento de funções que lhe são outorgadas sem questionar, porque não há uma justificativa plausível e aceitável para tal.

Mesclando as características da sociedade de controle com a sociedade disciplinar, Calvin ironiza a condição em que as pessoas seriam mais de um para cada área de sua vida, tendo em si uma pluralidade de identidades cabíveis a cada setor desta. Ele o faz através da adoção de alter-egos diferentes em várias de suas histórias, a partir de elementos de s

ua imaginação.

Calvin também abordou questões relacionados ao posicionamento do homem em relação ao mundo e a si mesmo numa tentativa de fazer o leitor refletir sobre suas próprias ações, mesmo quando não há ninguém fisicamente o observando, como era o objetivo do panoptismo de Jeremy Bentham.

  1. Dilbert e a formação da relação Indivíduo X Empresa

Dilbert talvez seja o mais perfeito exemplo físico da formação de corpos dóceis nos quadrinhos, pois a forma com que ele aborda o relacionamento do funcionário com a empresa em que trabalha sempre traz em si uma crítica à falta de opção dos trabalhadores (no caso, engenheiros), que têm que viver dentro dos minúsculos cubículos da empresa, e ao despreparo das figuras de controle (no caso, os gerentes).

Dilbert é a figura máxima do trabalhador que faz o que é mandado, mas que tem noção do que está abrindo mão, ou seja, do sacrifício que está fazendo, tentando muitas vezes reverter isso. Ao mesmo tempo, seu colega Wally é a figura máxima do oposto, uma vez que ele ouve as ordens, mas não as cumpre, fazendo apenas aquilo que tem vontade de fazer, adiando a cobrança da dívida social o máximo possível.

Sempre relacionando o chefe com a figura de alguém sem conhecimento da área com ilusões de poder pela hierarquia a qual é exposto, Dilbert aborda muitas das questões cômicas mencionadas por Deleuze que se desenvolvem a partir da variabilidade salarial, valorização profissional e os efeitos na vida pessoal do fato de trabalhar nesse tipo de empresa.

A adequação constante do funcionário ao trabalho acaba sendo um símbolo da prorrogação infinita da cobrança da dívida para com a sociedade, como o fazem Wally e outros, enquanto Dilbert é um dos poucos remanescentes do modelo de abordagem da sociedade disciplinar, buscando pagar a ‘conta’ que tem para com os demais, porém sabendo que nunca conseguirá quitá-la completamente. Mesmo reconhecendo a incompetência das suas fontes de cobrança, suas ações continuam visando um avanço social, o qual não é possível de alcançar.

  1. Conclusão

As histórias em quadrinhos são um reflexo do que a sociedade na qual elas são produzidas passa, visivelmente. No caso das tirinhas de humor, é que o espírito da auto-crítica exprime talvez melhor as opiniões sobre esse estado social. Seja na pluralidade de identidades de Calvin, na prorrogação da cobrança da dívida eterna social do Recruta Zero, ou na vã crença de poder pagá-la à sociedade e consequente permanência nos laços de relacionamento da sociedade disciplinar de Dilbert, a psicologia se faz presente nos quadrinhos há anos, e permanecerá assim enquanto estes durarem. Resta-nos apenas perceber as delineações produzidas pelos autores.

  1. Bibliografia

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir, 1987. Editora Vozes, 2003.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder,

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as Sociedades de Controle, 1972.

VAZ, Paulo. Corpo e Risco,____.

MOYA, Álvaro de. História das Histórias em Quadrinhos, 1987. Editora Brasiliense, 1996.

MOYA, Álvaro de. Vapt-Vupt, 2003. Editora Clemente & Gramani Editora.

MOYA, Álvaro de. Shazam!, 1977. Editora Perspectiva.

FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em Ação – Um Século de História, 1997. Editora Moderna.

PATATI, Carlos e BRAGA, Flávio. Almanaque dos Quadrinhos, 2006. Editora Ediouro.

ADAMS, Scott. Corra, o Controle de Qualidade vem aí!, 1997. Editora Ediouro.

ADAMS, Scott. Trabalhando em Casa, 2009. Editora L&PM Pocket.

ADAMS, Scott. Você está Demitido!, 2008. Editora L&PM Pocket.

ADAMS, Scott. Preciso de Férias!, . Editora L&PM Pocket.

GOIDA. Enciclopédia dos Quadrinhos, 1990. Editora L&PM.

WALKER, Brian. The Comics before 1945, 2004. Editora Harry N. Abrams Inc. Publishers.

Especial Revista Scientific American – Coleção Exploradores do Futuro: H. G. Wells, 2005. Editora Duetto.

http://uninuni.com/tirinhas/category/dilbert/page/23/

http://www.interney.net/blogs/inagaki/2008/12/08/as_mais_belas_tiras_de_calvin_e haroldo/

http://www.wikipedia.org/

http://www.omelete.com.br/

http://www.universohq.com.br/

http://quadrinhospraquemgosta.blogspot.com/

http://www.google.com.br/

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

E A Bienal Vai Chegando!!!

Por Gabriel Guimarães

Sei que não tenho conseguido postar com a frequência ideal no blog, galera, mas vamos ver se com o tempo isso vai se resolvendo...
Enquanto isso, venho aqui convocá-los a ir no evento maior dos representantes das editoras no Rio de Janeiro, a Bienal do Livro.
Lá, estarão as editoras Devir, responsável por grande parte das graphic novels europeias e volumes mais luxuosos de conteúdo estrangeiro; Conrad e JBC, responsáveis pela publicação de vários mangás e alguns livros teóricos sobre quadrinhos; Panini, que publica todo o material das gigantes estadunidenses, Marvel e DC; e a divisão de quadrinhos da editora Cia. das Letras, reconhecida pela compilação de obras de Eisner (ao lado da já mencionada Devir) e de outros autores estrangeiros sob o selo Quadrinhos na Cia.

Enfim, há muitas razões para a Bienal desse ano ser um evento de proporções grandiosas para as histórias em quadrinhos, a fim de também reunir seu público nos estandes de venda. Infelizmente, estes poderiam ter um certo destaque a mais, com mais espaço e divulgação, entretanto, aos poucos o reconhecimento vem vindo, e vamos continuar lutando por ele.

Faltam também, como devem ter percebido, editoras com empenho na publicação nacional e de respeitabilidade por isso, mas isso vai mudando, com iniciativas das editoras Desiderata, com "O Cabeleira"; Contexto, com uma enorme gama de livros teóricos sobre quadrinhos produzidos por autores brasileiros e estrangeiros, como "A Leitura dos Quadrinhos" e "Como Usar as Histórias em Quadrinhos na Sala de Aula"; fora as tradicionais publicadoras das HQs da Turma da Mônica e da recente Turma da Mônica Jovem.

Quem sabe na próxima Bienal do Livro não estaremos nós lá, lançando nossas próprias HQs e ajudando o meio a ser mais respeitado pelos ainda despreparados, a fim de cultivar nestes uma semente que os instigue a dar uma chance às páginas imortalizadas de Will Eisner, Stan Lee, Kurt Busiek, Alan Moore, Hergé, Osamu Tezuka, Dik Browne, Scott Adams, e dos mais recentes casos de maestria de roteiro, Geoff Johns e Brian Michael Bendis? Que Deus nos guie e possibilite tornar nossos sonhos realidade, se assim for da vontade Dele.

Como diz a mensagem, nos vemos na Bienal!