Por Gabriel Guimarães
Por muitos e muitos anos, vários quadrinistas como Will Eisner lutaram para o reconhecimento das histórias em quadrinhos como forma de arte e como um meio de comunicação digno e honrado, porém sempre encontraram obstáculos nessa jornada, como o psicólogo Frederic Wertham, autor do livro "Seduction of the Innocent" em 1954 (obra jamais traduzida para o português, (in)felizmente), em que acusava as revistas em quadrinhos da época de serem a ferramenta através da qual a delinquência juvenil se propagava, alegando que jovens que se encontravam em internatos faziam os atos de vandalismo influenciados pelos personagens de quadrinhos que liam.
Essa crítica ganhou um alto coro das comunidades de defesa dos bons modos que existiam à época, compostas por donas de casas, educadores e psicólogos, que se preocupavam com o bem estar moral das crianças. No Brasil, os artigos que eram escritos alertando para os riscos de expôr a classe juvenil aos modelos de comportamento dos gibis eram publicados de forma suntuosa em dezenas de periódicos como forma de atacar indiretamente o magnata da comunicação Roberto Marinho (como explicado aqui no blog alguns dias atrás).
Foi difícil fazer quadrinhos em grande parte do século XX, mas os autores persistiam em fazê-lo, trazendo a todos os leitores de seu material experiências memoráveis e que instruíam em boas virtudes, apesar do que muitos achavam. Alguns editores, como o russo-brasileiro Adolfo Aizen, tentavam mostrar o potencial educativo na arte sequencial através de edições luxuosas onde contava a vida de personagens ilustres da história brasileira e mundial, além de diversas edições e coleções especiais que lançava sobre os homens da Bíblia e modelos da fé cristã. Alguns de seus volumes tinham um acabamento tão bom e eram tão bem editadas e administradas, que uma grande parte do público considerava aquelas histórias como obra de arte e guardavam nas suas estantes ao lado dos livros que compravam nas livrarias.
Para entrar no tema que ocupa a segunda colocação na lista dos 10 maiores acontecimentos nas histórias em quadrinhos na década, é necessário revisitar o já mencionado Will Eisner. Uma vez, há muito tempo atrás, conforme ele dizia, as pessoas vinham lhe perguntar nas festas que ia qual era sua ocupação profissional, o que ele prontamente respondia como sendo desenhista de quadrinhos. Porém, percebendo a expressão de desgosto que os outros faziam quando dava essa resposta e como o seu meio era desconsiderado como meio de comunicação, Eisner cunhou um termo que hoje nos é parte do vocabulário básico dos leitores da nona arte: ele, para não causar choque ou desconforto nos outros e em si mesmo, passou a afirmar que era produtor de graphic novels (novelas gráficas). O seu reconhecimento cresceu assustadoramente, uma vez que ninguém sabia o que aquilo queria dizer de fato, mas soava muito bom. E, vale uma nota, foi Eisner a publicar a primeira graphic novel da história, "Um Contrato com Deus", em 1978.
Parece cômico, entretanto, passou-se a usar o termo eisneriano para qualificar toda obra que visasse ser reconhecida como material mais sério e não tanto infantil. Ele auxiliou na separação entre os quadrinhos adultos (que são mais associados a noções de pornografia e erotismo) das tirinhas infantis. Por muitos anos, contudo, não houve muitos exemplos de graphic novels para marcarem o gênero como elemento de referência no mundo, uma vez que a forma de conexão entre os espaços no mundo ainda não era tão desenvolvido como nos dias atuais. Na Bélgica, surgia Tintin, do quadrinista Hergé, e na França, começavam a serem publicados os belos trabalhos do desenhista Moebius, no entanto, não eram de fácil acesso ainda. No Brasil, as editoras ou não tinham recursos para trazer o material para cá e publicá-los na qualidade que eles careciam, ou não preferiam arriscar entrar no mercado que era sempre questionado de histórias em quadrinhos. A editora Abril, do italiano Victor Civita, procurou reverter um pouco isso com uma coleção que foi editada de janeiro de 1988 a junho de 1992, o que atraiu um público considerável. O Brasil começava a demonstrar interesse no gênero.
Então, chegamos à década que terminou há pouco. Já vindo sendo publicados há tempos no formato de livro, os quadrinhos europeus, desde a década de 1980, quando a cultura inglesa mudou o rumo dos quadrinhos no mundo, começavam a chamar a atenção do público, mas este acabava sendo frustrado pelo fato de não se publicarem os materiais de forma apropriada ou até de forma alguma aqui. Isso começou a mudar nos anos 2000. A publicação de "Persépolis", da autora iraniana Marjane Satrapi, originalmente publicada na França, que chegou ao Brasil pela editora Companhia das Letras, em 2004, é um bom exemplo disso. A série de mangás com a biografia do padrinho dos quadrinhos japoneses, Osamu Tezuka, também é uma publicação que chamou atenção, pela editora Conrad, ainda em 2003. E não parou por aí.
A editora Panini não pode ser esquecida aqui porque ela foi, talvez, um dos maiores gatilhos para que a publicação de graphic novels no Brasil começasse a ocorrer de forma tão acentuada como foi e ainda tem sido. Antes parte do repertório da editora Abril, os personagens da Marvel e da DC viveram décadas de muitas aventuras majestosas no modelo formatinho em que eram publicados. Porém, uma vez vendidas as tiragens das revistinhas na sua época de publicação, raramente era possível aos leitores que surgissem posteriormente encontrar o material para ler, sem ter que caçar em sebos ou lojas especializadas por ele, ou encontrar alguém em meio aos seus círculos de amizade particulares que possuísse as edições com a história que procurassem. Era desconfortável, desanimador. A Panini, compreendendo o modelo de publicação dessas histórias onde foram originalmente publicadas, ou seja, nos Estados Unidos, começou a inovar, lançando reedições de histórias clássicas dos personagens que eram feitas no exterior, aumentando assim a chance e o vigor dos novos leitores na sua atividade de ler quadrinhos.
"Lendas", arco de histórias publicado em 1986 com a Liga Justiça, "A Guerra das Armaduras", história publicada em 1987 nas revistas do Homem de Ferro, a clássica e essencial história da "Fênix Negra" protagonizada pelos X-men em 1979; são apenas alguns exemplos das histórias que foram republicadas e que deram fôlego aos novos leitores para compreender todo o percurso de seus personagens favoritos até o ponto em que estão hoje, e que foi possibilitado de chegar às mãos deles por edições especiais desenvolvidas pela editora Panini. A editora Mythos, com autorização da Panini, ainda foi responsável por trazer aos novos fãs dos heróis a brilhante reformulação do Superman pelas mãos de John Byrne e Dick Giordano, que ocorreu em 1986/1987 numa nova publicação em 2006.
E, seguindo no modelo criado após a publicação da minissérie original de "Watchmen" feito nos Estados Unidos, onde as editoras reuniam as edições que formavam um arco fechado e as republicavam num papel melhor com um acabamento mais fino para continuar lucrando com o material mesmo após ele deixar de ser inédito (como já foi mostrado aqui no blog), a Panini começou a fazer igual, republicando, por exemplo, "Homem-Aranha: Caído entre os Mortos" em 2007 (arco originalmente feito por Mark Millar com desenhos de Terry Dodson em 2004), sendo que este havia sido publicado nas edições 41 a 50 da série normal do Homem-Aranha pela mesma Panini poucos anos antes.
Observando a quantidade de graphic novels vendidas, a Panini começou a investir em acabamentos cada vez melhores, o que permitiu a republicação de histórias maravilhosas como "Terra X", "Marvels" e "Camelot 3000" com um acabamento de luxo dado a poucos livros no mercado, mas que, ainda assim, geravam um bom retorno financeiro à editora. Obviamente, ela não seria a única a ver essa oportunidade de ouro com a venda de quadrinhos em forma de livro.
As revistas se tornaram, então, quase uma linha secundária de se encontrar quadrinhos, uma vez que novas editoras como a Balão Editorial, a Gal Editora e a Barba Negra começavam a investir em material inédito da nona arte para publicação direto em livro. Editoras tradicionais já, como a Companhia das Letras, ainda foram além. A Cia. das Letras criou um selo individual de si mesma apenas para a fatia de mercado de quadrinhos com a qual lidava, e, a meu ver, foi talvez um dos maiores destaques da década, pelo repertório de histórias publicadas, pela qualidade do material em termos artísticos e físicos, pela diversidade que deu à abordagem de suas publicações (que iam desde o avassalador sucesso da juventude moderna "Scott Pilgrim" até republicações das obras do mestre Will Eisner, como "Nova York - A Vida na Grande Cidade" e "Ao Coração da Tempestade"; e Joe Sacco, com seu estilo único de jornalismo em quadrinhos visto em "Notas sobre Gaza").
Falei muito sobre obras estrangeiras lançadas aqui no Brasil, mas nessa revolução toda que temos visto (que tornou possível, pela primeira vez, realmente encontrar histórias em quadrinhos colocadas em pé de igualdade, em termos de importância, nas prateleiras de livrarias com grandes clássicos da humanidade), os autores brasileiros também foram muito beneficiados. Muitos começaram a ser, inclusive, procurados por editoras para lançarem seus trabalhos, uma vez que já demonstravam ter um público constante razoável em número para possibilitar uma tiragem nas gráficas, como foi o caso dos gêmeos Fábio Moon e Gabriel Bá, que fizeram a adaptação para a arte sequencial do clássico "O Alienista", de Machado de Assis, pela editora Agir em 2007, que é considerado por muitos como a melhor adaptação do gênero já produzida até agora. Danilo Beyruth, Celso Menezes, Felipe Massafera (estes três como já mencionei aqui antes quando falei do aumento da qualidade e quantidade dos quadrinhos nacionais), João Montanaro, entre outros, também são alguns dos autores que passaram a ter o trabalho publicado no formato livro e trazendo boas respostas às editoras que os lançaram.
Hoje, os quadrinhos ocupam, em média, uma estante nas maiores livrarias, mas o número de quadrinhos publicados como graphic novel só tem feito crescer, e não duvido de que o espaço que hoje é ocupado por livros específicos demais para encontrar mercado em alguns pontos do Brasil seja, muito em breve, "quadrinizado". Acho que Will Eisner, que faleceu em 2005, estaria orgulhoso do rumo que o setor está tomando, então, não querendo ser pretensioso ou nada do gênero, agradeço e presto minha homenagem a ele (que já havia feito uma vez antes aqui no blog), que deu início a todo esse processo pelo reconhecimento dos quadrinhos, e dedico tudo que tem se desenrolado desde então às suas batalhas iniciais no começo de tudo.
3 comentários:
Quem sabe você não vira um empreendedor neste ramo? Fazendo P.E. esse pode ser um mercado bom para você trabalhar.Tenho certeza que faria um trabalho de excelente qualidade! ;)
Excelente artigo!
Dá gosto de ver que cada vez mais os quadrinhos adquirem status de arte e garantem seus lugares nas prateleiras das livrarias. Afinal de contas, contar uma boa história é sempre contar uma boa história, independentemente de fazermos isso na literatura, no cinema ou no teatro. E sempre haverão boas histórias para serem contadas em quadrinhos.
>Tássia
Tudo que estou fazendo é voltado pra alcançar isso. Se Deus quiser, as portas certas se abrirão no momento certo. =)
>Vanessa
Obrigado! Concordo plenamente.
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