As histórias em quadrinhos surgiram como um meio de comunicação de massa no dia 5 de maio de 1895, quando foi publicado pela primeira vez no caderno de domingo do jornal New York World uma tira chamada Down Hogan’s Alley, criada pelo artista norte-americano Richard Outcault (1863-1928). Além de ser a pioneira nesse ramo, essa tira ainda introduziu o primeiro personagem da história das histórias em quadrinhos, o Menino Amarelo, título que levou posteriormente o próprio meio jornal a ser chamado de imprensa amarela.
Por muito tempo ainda, os quadrinhos viriam a ter conteúdo meramente infantil, até 1929, quando, em decorrência da crise da bolsa,começam a surgir os primeiros heróis, Buck Rogers (1929), o Fantasma (1936), o Príncipe Valente (1937), Superman (1938) e Batman (1939). Eles significavam para os americanos que apesar de todos os obstáculos que apareciam, haveria quem os protegesse e impedisse que o mal vencesse no final.
Com a Segunda Guerra Mundial, houve um crescimento muito grande das vendas de revistas em quadrinhos como Captain America comics e Whiz comics, em que os heróis americanos apareciam combatendo nazistas do Velho Continente. Entretanto, nem tudo era um mar de rosas. Havia muitas discussões sobre o Superman, em que radicais americanos acusavam-no de ser o ideal proposto por Nietzche e radicais alemães acusavam-no de ser uma arma do imperialismo.
Quando a guerra acabou, muitos achavam que essa questão fosse ser deixada de lado, mas o que aconteceu foi o contrário. Os nazistas caíram, mas os comunistas iam surgindo como uma das maiores ameaças que o mundo capitalista já viu. Foram formados então comitês para denunciar as pessoas com tendências socialistas, dificultando a liberdade na criação de histórias. A obra ‘Sedução dos Inocentes’, do psiquiatra Frederic Wertham, atacou com tudo as histórias de heróis, em especial as do Batman, as quais foram acusadas de ter teor homossexual no que se tratava do relacionamento do vigilante de Gotham com seu parceiro mirim, Robin. Durante anos, foi muito difícil fazer quadrinhos, mas com o passar do tempo, esses debates foram tendo menos e menos destaque.
Nos anos 60, o destaque nas histórias em quadrinhos foi da Marvel Comics, antiga Timely Comics, graças ao roteirista Stan Lee, que renovou o meio dando um tom mais humano aos personagens super-heróicos, criando o Homem-Aranha (1962), os X-men (1963), o Hulk (1962), o Homem de Ferro (1963) e os Vingadores (1963), além de ‘trazer de volta da tumba’ o Capitão América. As histórias dos X-men, inclusive, foram muito usadas como símbolo da luta contra o preconceito racial. Enquanto isso, na sua maior concorrente, a DC Comics, personagens como o Lanterna Verde (1946; 1959) e Flash (1946; 1956) eram reinventados pelo editor Gardner Fox com maiores influências científicas, resultado do positivismo da época.
Os quadrinhos viam um futuro brilhante pela frente, entretanto, com exceção de algumas poucas histórias, como Lanterna Verde/Arqueiro Verde (1970), de Dennis O’Neil e Neal Adams, esse tipo de literatura caiu na mesmice, levando muitos leitores assíduos a parar de ler as revistas.
Na década de 1980, estava em andamento uma revolução na área, quando a Marvel e a DC expandiram suas linhas de história e, das lojas de varejo e das empresas de distribuição mais recentes, surgiram novas editoras para lidar com o ‘mercado direto de vendas’ (‘Homens do Amanhã’, pág. 395). Em 1985, é lançada a mini-série Batman: Dark Knight, de Frank Miller, que remodela o meio, visto que pela primeira vez, o autor se torna mais importante que o personagem que escreve, igualando os critérios do cinema, onde o foco maior é no seu autor, e não no mocinho da história (‘História das Histórias em Quadrinhos’, pág. 191).
É nesse contexto que, em 1988, ainda durante a Guerra Fria, que os britânicos Alan Moore e David Gibbons lançam a história em quadrinhos considerada até os dias de hoje como a melhor de todos os tempos, Watchmen.
Baseada na linha de raciocínio filosófico ‘quem vigia os vigilantes?’, a história
A trama começa com o assassinato de Edward Blake, que logo se revela como sendo a identidade secreta do herói Comediante, que representava a proposta artística de seus autores. Tal qual o Coringa, no prestigiado ‘A Piada Mortal’ (1989) do mesmo Alan Moore com arte de Brian Bolland, ele é um homem que reconhece o horror presente nas relações humanas e se refugia no humor. Para o personagem, a ironia é, em vários momentos, um reflexo amargo da percepção desse horror.
A morte dele, um dos únicos heróis ainda ativos depois do ato Keene de 1977, que baniu todos os super-heróis que não trabalhassem diretamente para o governo norte-americano, atrai a atenção de seus antigos colegas de equipe, os Combatentes do Crime, em especial o misterioso Rorschach, cuja identidade é um absoluto mistério até quase metade da história. Tal qual Blake, Rorschach descobre o terror humano, como relata no capítulo 6 da história, mas ao invés de encarar a vida de maneira cômica, volta-se para a obscuridade e a violência do submundo do crime.
Pouco depois de visitar os aposentos de seu antigo colega, começa a investigar um possível assassino de mascarados. A partir daí, a história mostra o reencontro dos antigos heróis: O segundo Coruja da Noite (Daniel Dreiberg), Miss Juspeczyk (Laurie Juspeczyk), Ozymandias (Adrian Veidt), e Dr. Manhattan (Jonnathan ‘Jon’ Osterman).
Conforme a trama se desenrola, o leitor toma ciência de toda a história dessa realidade alternativa, onde Nixon ainda é presidente dos Estados Unidos em 1985 e os americanos ganharam a Guerra do Vietnã com a ajuda do poderoso Dr. Manhattan e do Comediante. Entretanto, semelhante ao mundo real no ano em que a história se passa, a Guerra Fria permanece uma batalha em que não há vencedores, mas sim dois perdedores.
Apesar desse forte caráter político, Watchmen ganhou muito destaque entre os especialistas em histórias em quadrinhos e em ficção científica devido aos complexos perfis psicológicos de seus personagens (fonte: New York Times Book Review).
Não só os heróis da história têm que lidar com uma série de mentiras e dramas do passado, como também com os acontecimentos decorrentes da morte de Blake, como o auto-exílio do Dr. Manhattan, ocorrido depois de um programa de auditório em que um grupo de repórteres acusam-no de provocar câncer na sua antiga cônjuge, Janey Slater, e em um de seus antigos inimigos, Moloch.
Esse personagem teve talvez um dos maiores destaques devido a sua relação com a proposta da história de buscar a falta de limites para as ações dos super-heróis. Visto que seu nome vem do Projeto Manhattan, que buscava o desenvolvimento da primeira Bomba Atômica, seus poderes não poderiam ter uma origem muito distante da molecular. Tendo sido um cientista atômico antes de conseguir seus poderes em 1959, Jon fazia experiências sobre partículas nucleares num laboratório no Arizona até que sofre um acidente numa câmara de testes e ao invés de morrer, adquire o poder de manipular suas moléculas e as de quaisquer outros materiais, vivos ou não. Sem esse limite humano, ele acaba perdendo sua própria humanidade e vira um transeunte em meio a um mundo de seres ‘inferiores’. Há, inclusive, momentos na história em que ele chega a ser questionado sobre a razão de não ter feito nada para impedir o assassinato de John F. Kennedy e de uma mulher vietnamita.
Nessa linha de história, chega um ponto em que os personagens se vêem envolvidos numa trama tão grande e tão carregada de desumanidade que não sabem o que fazer para impedir que o mal aconteça, e até mesmo, se devem impedi-lo, uma vez que, através dele, é possível chegar a um estado de paz mundial, ainda que apenas momentaneamente.
É para esse momento que a história toda leva o leitor. Esse questionamento sobre se é certo matar para se viver, ou se o peso disso na consciência de um homem é um fardo pesado demais para se carregar.
Moore disse que ‘enquanto Miller salvou os super-heróis, eu tentei assassiná-los’ (‘História das Histórias em Quadrinhos’, pág. 193), revelando suas falhas, e que mesmo possuindo características sobre-humanas, eles também cometiam erros e muitas vezes não mediam todas as conseqüências dos seus atos.
III. Repercussão – Simetria do Medo:
Através da união do universo dos super-heróis típicos norte-americanos com o dimensionamento intelectual característico dos europeus (‘Enciclopédia das Histórias em Quadrinhos’, pág. 243), Alan Moore atingiu um novo patamar das histórias em quadrinhos, chegando a ter repercussão até em outras mídias.
Partindo do conceito de histórias em quadrinhos como arte seqüencial, criado pelo pioneiro Will Eisner (1917-2005) e reforçado pelo especialista Scott McCloud, a história seguiu uma linha de raciocínio que não teria sido atingida de nenhuma outra maneira se mão pelo traço do desenhista David Gibbons, ao qual foi creditado parte do realismo sensível nos personagens de Watchmen e em seu mundo (‘Enciclopédia das Histórias em Quadrinhos’, pág. 141), e que o levou a ser considerado um dos mais importantes ilustradores da época.
Se a importância das histórias em quadrinhos antes de Watchmen levou até o teórico Marshall McLuhan a ponderar sobre seu uso na comunicação de massa, ao dizer que ‘a violência de um ambiente industrial e mecânico tinha de ser vivida e ganhar motivação e significado nos nervos e nas vísceras dos jovens. Viver e ter a experiência de algo é traduzir seu impacto direto sob muitas formas indiretas de conhecimento. Damos aos jovens uma estridente e roufenha selva de asfalto, em comparação com a qual uma selva de animais tropicais parece mais calma e mansa do que uma coelheira. Achamos isto normal. Pagamos às pessoas para manter essa coisa em seu máximo de intensidade, só porque dá lucro. E os olhos se abriram surpresos quando a indústria do entretenimento se propôs realizar um fac-símile razoável da agitação urbana comum. (...) Tanto os quadrinhos como o anúncio pertencem ao mundo do jogo, ao mundo dos modelos e das extensões e prolongamentos das situações que se passam em outra parte. (...) Não há uma abordagem única para esta tarefa; nenhuma observação ou idéia isolada pode resolver um problema tão complexo, qual seja o da mudança da percepção humana.’ (‘Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem’, págs. 193 e 194), e o comunicador Armand Mattelart a analisar sua influência nas mesmas massas, ao concluir, analisando as história do Pato Donald e do Tio Patinhas, ambas da Disney, que ‘é justamente um mundo onde a burguesia industrial pode impor suas leis a todas as atitudes e aspirações dos demais setores, internos e externos, utilizando ideologicamente o setor terciário da atividade econômica como utopia, como projeção sentimental, como único futuro. Essa dominação, em um momento histórico concreto, se traduz e se reflete numa dominação similar dentro do universo-Disney, seja por meio da própria indústria que vende a revista, seja pelas relações dos imaginários dos personagens entre si.’ (‘Para ler o Pato Donald’, pág. 129) , depois dela, chegou ao nível de ser considerada não só pela sua forma, mas também pelo seu conteúdo, analisando sob a perspectiva do método do UPGA.
Em 1988, ganhou o Prêmio Hugo como melhor história de ficção científica, o que surpreendeu muitas pessoas, visto que era a única história em quadrinhos dentre os concorrentes. Além disso, ainda figurou entre as 100 obras de ficção mais importantes do século XX pela revista TIME. Começava então a ter mais visibilidade e importância a indústria dos quadrinhos para o mundo literário adulto e o mundo real.
IV. Influências causadas por Watchmen – Um mundo mais forte:
É possível que Alan Moore já soubesse de antecedência a importância e influência que sua história teria para o meio ao concluir a obra de Watchmen com a frase ‘eu deixo isto inteiramente em suas mãos’. Essa frase acabou simbolizando a vontade de Moore em instigar os leitores a buscarem mais das histórias que lessem e medirem melhor as conseqüências de suas ações.
Depois que Watchmen foi lançado pela DC Comics em
Nas décadas seguintes, muitas histórias foram publicadas já a partir desse novo modo de olhar a ficção de super-herói, como ‘A Morte do Super-Homem’ (1993) e ‘A Queda do Morcego’(1993-1994), nas quais foi posto em cheque o paradigma de que os heróis nunca morriam, ‘Morte em Família’ (1988), ‘A Piada Mortal’ (1989), ‘Asilo Arkham’ (1989) e ‘Batman: Cidade Castigada’ (2007), as quais também seguiram na linha de raciocínio do cinismo heróico e da perda dos padrões morais dos vilões.
Porém, não foi só a DC Comics que passou por severas mudanças de tratamento sobre seus personagens. Sua maior rival, Marvel Comics, iniciou uma busca por fazer histórias mais verossímeis e violentas, como foram os casos de ‘Homem-Aranha: Tormento’ (1990), ‘A Última Caçada de Kraven’ (1989), ‘Os Supremos’ (2004), ‘Guerra Civil’ (2007) e ‘Livros do Destino’ (2008).
Outra inovação vinda de Watchmen foi a nova organização editorial das histórias em quadrinhos, onde nas revistas de linha passaram a ser publicadas histórias que durassem não mais só uma edição, mas seis, sete, num arco de histórias, com o intuito de que depois de lançadas normalmente, pudessem vir a ser reunidas e republicadas em edições mais luxuosas e caras, tal qual feito com a obra principal deste texto.
Hoje, é possível ver em qualquer gibiteria ou banca de jornal coletâneas de histórias antigas das editoras Marvel Comics, DC Comics, Dark Horse Publishing House, Wildstorm Comics, entre outras.
Mas não se limitou apenas à indústria de quadrinhos a influência de Watchmen. Séries de televisão como Heroes e LOST tiraram muito material para seus episódios da obra de Moore e Gibbons. O próprio criador de LOST, Damon Lindelof, fala de Watchmen como ‘a maior obra de ficção popular já publicada’, e um dos roteiristas da série, Brian K. Vaughan, mais conhecido pelo seu trabalho para as duas grandes indústrias norte-americanas de quadrinhos, afirma que decidiu seguir carreira na área de desenvolvimento de roteiros principalmente por causa dela. Em Heroes, há episódios da primeira temporada que simulam um futuro pós-apocalíptico quase idêntico ao de Watchmen, fato que levou a muitíssimas críticas de plágio tanto pelos fãs de quadrinhos que não viam a série quanto pelos seus próprios telespectadores.
No cinema também é possível analisar frutos de Watchmen na produção de histórias. ‘Os Incríveis’ (2003), da Disney, é um exemplo disso, uma vez que mostra uma realidade onde os heróis foram banidos por ação do governo norte-americano.
V. Conclusão – A verdade indizível:
Watchmen foi uma história que marcou o fim de um período infantil das histórias de super-heróis para trazer um tom mais real e humano para esse tipo de personagens, afetando toda uma geração de autores e leitores. Os limites literários dessa história ainda não são totalmente claros, uma vez que todos os críticos afirmam aprender mais com a trama cada vez que a lêem, mas uma conclusão é certa, a abordagem que Alan Moore e David Gibbons deram ao já desgastado tema de aventura de super-heróis renovou o meio, elevando os padrões buscados pelos leitores, e, por conseguinte, os dos escritores e desenhistas, que passaram a trabalhar juntos na busca por uma narrativa perfeita como vista
VI. Bibliografia – Diário de Rorschach:
http://pt.wikipedia.org/wiki/Watchmen
http://en.wikipedia.org/wiki/Watchmen
MOORE, Alan e BOLLAND, Brian. A Piada Mortal, 1989. Editora DC Comics.
DEMATTEIS, J. M. e ZECK, Mike. A última caçada de Kraven, 1988. Editora Marvel Comics.
BRUBACKER, Ed e RAIMONDI, Pablo. Os Livros do Destino, 2008. Editora Marvel Comics.
MILLAR, Mark e MCNIVEN, Steve. Guerra Civil, 2007. Editora Marvel Comics.
MILLAR, Mark e HITCH, Brian. Os Supremos, 2004. Editora Marvel Comics.
AZZARELLO, Brian e RISSO, Eduardo. Batman: Cidade Castigada, 2007. Editora DC Comics.
PATATI, Carlos e BRAGA, Flávio. Almanaque das Histórias em Quadrinhos, 2006. Editora Ediouro.
JONES, Gerard. Homens do Amanhã, 2006. Editora Conrad.
O’NEIL, Dennis e
FEIJÓ, Mário. Quadrinhos em Ação, 1997. Editora Moderna.
SIEGEL, Jerry e SHUSTER, Joe. Action Comics #1, 1938. Editora National Comics.
IANNONE, Leila Rentroia e IANNONE, Roberto Antonio. O Mundo das Histórias em Quadrinhos, 1996. Editora Moderna.
MOYA, Álvaro de. História das Histórias em Quadrinhos, 1996. Editora Brasiliense.
MATTELART, Armand e DORFMAN, Ariel. Para ler o Pato Donald, 1980. Editora Paz e Terra, 2002.
MCLUHAN, Marshall. Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, 1964. Editora Cultrix, 2006.
GOIDA. Enciclopédia das Histórias em Quadrinhos, 1990. Editora L&PM.
MCCLOUD, Scott. Desvendando as Histórias em Quadrinhos, 1995. Editora M. Books.
GUEDES, Roberto. A Era de Bronze dos Super-Heróis, 2008. Editora HQM.
EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Seqüencial, 1985. Editora Martins Fontes, 1999.
Um comentário:
Ainda pretendo ler detalhadamente este post...
Fiquei sabendo por aqui sobre Homem-Aranha: Potestade; no mais, achei legal a iniciativa de dispor material sério acerca de pesquisas de quadrinhos... São poucos os que levam hq a sério.
Também gosto de quadrinhos e estou começando algo parecido.
Parabéns pelo trabalho! Estou acompanhando você!
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