segunda-feira, 5 de março de 2012

Ultrapassando a Quarta Parede

Por Gabriel Guimarães


No setor de produção de conteúdo audiovisual, é comum observar termos relacionados ao uso da "quarta parede" em cena. O potencial de recursos usados para trabalhar esse elemento é incrível, e cada diretor, seja focado no cinema ou na televisão, utiliza-se disso de forma particular, tornando muitas vezes essa característica um grande referencial de seu trabalho. Aos quadrinhos, isso também pode ser facilmente aplicado, tal qual já foi possível ver em vários casos.

Cena durante a gravação de um dos filmes de Hitchcock, em
que é possível observar claramente o conceito da "quarta parede"
Para aqueles não familiarizados com o termo, "quarta parede" refere-se ao lado do cômodo retratado em cena no qual a câmera se posiciona, ou seja, através do qual nossos olhos observam a cena. Conforme o comunicólogo e sociólogo Marshal McLuhan destacou, os meios de comunicação funcionam como extensão dos sentidos humanos, ampliando, dessa forma, nossa capacidade de tornar-mo-nos parte de algo, mesmo a quilômetros de distância do ambiente em que essa determinada ação acontece. Para tanto, cabe ao diretor definir a posição exata em que esse nosso olhar estará fixado para testemunhar a cena. Em geral, a composição de um set de filmagens é organizado para se remeter a um quarto tradicional, com quatro paredes, porém, apenas três são retratadas, a fim de que seja possível para as câmeras utilizadas abordar de diferentes ângulos os eventos a serem filmados. À parede localizada hipoteticamente atrás das câmeras, ou seja, que raramente é vista, é dado o nome de "quarta parede". O diretor americano Alfred Hitchcock é um dos grandes nomes da indústria cinematográfica que trabalhou com esse recurso de formas inesperadas e brilhantes. Suas obras "Janela Indiscreta" e "Festim Diabólico" são exemplos muito recomendados disso. O primeiro, usou de apenas um galpão de estúdio e um ângulo de referência para se construir toda a história do filme, e o segundo, foi composto todo em apenas um plano, sem cortes, tornando a trama sinistra de assassinato tensa e em um ritmo de mistério e suspense únicos, característica marcante no trabalho de Hitchcock.

John Byrne foi parte de várias histórias
da Mulher-Hulk como ele mesmo
Esse recurso também retrata a expansão do sentido mostrado em cena para além dos limites tradicionais da narrativa convencional. Exemplo disso é a animação "A Nova Onda do Imperador", onde o personagem principal dirige seu discurso em determinados momentos ao espectador, consciente de ser ele o protagonista da história. Nos quadrinhos, esse recurso também é muito utilizado por autores e editoras, a fim de aproximar a ficção da realidade dos leitores. O trabalho do quadrinista underground Harvey Pekar é um caso claro disso (conforme já foi comentado aqui e aqui no blog). Outro exemplo muitas vezes relevado disso é a temática muito encontrada nas histórias da personagem Mulher-Hulk, em especial, no seu período sob o traço e concepção do americano John Byrne, na editora Marvel. Chegando a utilizar termos relativos à produção de roteiros da indústria dos quadrinhos, é impressionante o trabalho feito por Byrne, trabalhando a personalidade sarcástica da personagem em tons hilários e instigantes. O roteirista Grant Morrison, igualmente, realizou tal trabalho com o personagem "Homem-Animal", na editora DC, chegando a colocar frente a frente o personagem com uma representação ficcional do próprio Morrison como roteirista dentro da história. Na recentemente republicada saga "Novos Vingadores - Motim", essa representação dos autores dentro de suas obras foi feita de forma curiosa. Em meio a uma das histórias da coletânea lançada pela Panini, o roteirista Paul Jenkins, responsável por trazer o personagem Sentinela "de volta" ao universo Marvel surge na história ficcional como o único que lembra quem o personagem era, através das histórias em quadrinhos que ele fazia. O fator curioso nisso reside no fato de que o roteirista desta trama em que a ficção e a realidade se misturam não é Jenkins, mas sim o roteirista Brian Michael Bendis, numa forma talvez singela de homenagear ou brincar com seu colega de trabalho.


Outra forma de ruptura da "quarta parede" é o uso da metalinguagem, onde o meio em que a produção ficcional se dá aborda justamente o universo real de sua produção. Exemplos disso são fáceis de se observar, tanto no cinema quanto nos quadrinhos, como são os casos da comédia "Os Picaretas" e a ficção científica "Super 8", na sétima arte, enquanto que a trilogia de graphic novels "Fracasso de Público", do americano Alex Robinson, e a excelente história autobiográfica de Will Eisner, "O Sonhador", são casos mais claros disso na nona arte. O mangá "Bakuman" (já citado em outras matérias do blog, que podem ser vistas aqui), é um exemplo de igual força e qualidade, produzido pela dupla Tsugumi Ohba e Takeshi Obata, publicado no Japão pela editora Shueisha, referência no mercado japonês no setor de entretenimento desde sua fundação em 1925. No cenário brasileiro, o livro "HQs - Quando a ficção invade a realidade", escrita pela paulista Rosana Rios e belissimamente ilustrada por Amilcar Penna, é outro bom exemplo disso.


No filme "Mais Estranho que a Ficção", de 2006, foi abordada a questão da "quarta parede" de uma forma diferente, relevando a faceta da ficção invadindo o campo da realidade, onde o protagonista do filme, Harold Crick, ouve espantado a narração da autora de um livro que supostamente seria sua vida, e que culminaria com sua morte. Agoniado com a iminência da fatalidade que o espreita, Harold procura de todas as formas possíveis mudar o rumo da ficção sendo escrita sobre si, para que possa ser salvo. Algo similar é possível ser encontrado na história em quadrinhos "Superman - Identidade Secreta", feita pela dupla Kurt Busiek e Stuart Immonen, centrada na história de vida de um garoto real, morador da cidade de Kansas, que teve seu nome dado em homenagem ao personagem de quadrinhos Clark Kent, e que precisa aprender a lidar com as provocações e responsabilidades a isso atribuídas.

De forma apaixonante, somos convidados a romper essa barreira entre o quadrinho e a realidade, e nos deliciarmos com os frutos maravilhosos dessa união. Os autores, como os chargistas João Montanaro e Will Leite, este cujo site pode ser visto aqui, são os grandes responsáveis por nos oferecer essas nuances memoráveis entre a ficção e o nosso cotidiano, e certamente o futuro reserva muito mais possibilidades para essa relação multimídia.


2 comentários:

João Ferreira disse...

Muito legal a matéria sobre a "Quarta Parede". Eu desconhecia o termo e acabei aprendendo algumas coisas novas. Se me permite uma sugestão, faça outros posts como este, sobre técnicas. Já te disse que não sou da área, sou apenas um fã de cinema e HQ's. Portanto, no meu caso, tais tipos de posts são úteis no meu aprendizado. Valeu! Abraços!

GG disse...

Que bom que gostou, João!
Com certeza, explicaremos terminologias específicas do meio conforme surgir a oportunidade, a fim de promover um esclarecimento melhor para nossos leitores.