Por Gabriel Guimarães
Na sexta-feira da semana que vem, dia 15 de maio, será realizado no Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro, um evento dedicado a comemorar os 75 anos de um dos grandes personagens do quadrinista Will Eisner, o
Spirit. Publicado a partir da parceria entre Eisner e o editor Everett ''Busey'' Arnold, responsável por edições da Quality Comics, o personagem representou uma grande ruptura na vida do autor nova-iorquino e ofereceu ao público leitor das
funny pages e das revistas de aventura um material mais maduro e com maior domínio das ferramentas visuais das histórias em quadrinhos do que era o habitual do período. Publicado de forma ininterrupta até 1952, tendo sido produzido integralmente pelo próprio Eisner a maior parte desse tempo, o personagem tornou a aparecer nas décadas seguintes, principalmente através de republicações, enquanto seu criador passou a se dedicar às suas obras de
graphic novel (termo, inclusive, cunhado por ele, fato que abordamos em matéria anterior
aqui no blog), que o consagraram ainda mais no meio.
Antes da criação do detetive Denny Colt, que se tornaria o
Spirit logo em sua estreia nos quadrinhos, Eisner era parceiro do também quadrinista Jerry Iger no syndicate responsável pela produção de dezenas de títulos veiculados nos jornais da época, o Eisner & Iger, que contava ainda com nomes de peso em suas pranchetas, como Lou Fine e Jack Kirby. Após um início complicado financeiramente, o estúdio já oferecia um retorno bastante positivo aos dois sócios no final da década de 1930, porém, não saciava o desejo de Eisner em produzir um conteúdo que diferisse do padrão majoritariamente infantil do período anterior à Segunda Guerra Mundial. Abordado pelo editor ''Busey'' Arnold após os jornais demonstrarem interesse em lançar suplementos que concorressem pela atenção dos leitores das bancas com as revistas especialmente dedicadas aos quadrinhos, Eisner viu a oportunidade de produzir um material de teor mais maduro, que apontasse os elementos humanos na sociedade americana depois da Crise da Bolsa de 1929. Após discutir com Arnold sobre a necessidade de o personagem entrar no recém-criado filão dos heróis de capa e superpoderes, algo a que Eisner era contrário, chegou-se à conclusão de que o personagem carregaria um pseudônimo e uma máscara para combater o crime, além de ter uma origem mirabolante e fantasiosa, porém, as histórias carregariam uma temática policial mais do que heroica, e os seus personagens seriam trabalhados de forma mais dedicada que as fantasias joviais rotineiras. Depois de chegarem a esse acordo, Eisner encerrou sua participação no syndicate, que passou a ser chamado de Phoenix Features, e reuniu uma nova leva de profissionais para auxiliá-lo na produção das histórias do personagem, que seriam depois distribuídas de forma sindical por Arnold junto aos jornais interessados.
Por anos, Eisner trabalhou de forma empenhada na sua nova criação, que ocasionalmente dividia espaço na
''The Spirit Section'' com outros personagens menores como Mr Mystic e Lady Luck, mas, em 1942, o autor foi convocado para o exército dos Estados Unidos e precisou se ausentar do mercado editorial, cabendo a Arnold substituí-lo por outros quadrinistas durante os anos seguintes. Uma vez regresso, Eisner novamente assumiu seu personagem e construiu de vez a mitologia que este carrega até hoje, contando com um traço mais refinado pelo fato de Eisner ter trabalhado na confecção de muitos manuais técnicos para as Forças Armadas. Com ricas aventuras imersas em drama e suspense, os leitores e os próprios profissionais do ramo admiravam o espírito de inovação que estava sendo desenvolvido naquele período para os quadrinhos, que recebeu muitas influências cinematográficas. Contudo, no final dos anos 1940, o mercado de histórias em quadrinhos passou a sofrer com a perda de novos leitores, cujo interesse passou a se concentrar em torno da televisão, que começava a crescer na época; além de conviver com a constante desconfiança das autoridades moderadoras sobre o uso dessa mídia no desvirtuamento das crianças e jovens. Eisner, que já estava mais envolvido pelo projeto que tinha junto da editora governamental American Visuals (algo mais seguro social e economicamente para um artista que começava a construir uma família), tentou ainda aproveitar o viés da exploração espacial para tornar novamente relevante seu personagem, porém, seu trabalho com o
Spirit, que já vinha ganhando suporte de outros profissionais como Jerry Grandenetti, Jules Feiffer, Wally Wood e Jim Dixon, acabou chegando a um final em 1952.
Mais tarde, já nos anos 1960, Eisner encontrava-se em conflito com os novos responsáveis pela produção de seu conteúdo na ''P*S Magazine'', para a qual trabalhava desde então, mantendo um taxa de serviço constante do autor para o preparo de segmentos de características técnicas para os soldados do exército, em meio à crise no mercado editorial dos quadrinhos. Durante a Guerra do Vietnã, o volume de trabalho oferecido a Eisner era o suficiente para que ele pudesse sustentar sua casa e conquistar maior segurança financeira, porém, os movimentos antiguerra o faziam balançar sobre o que separava seus manuais voltados para o uso adequado do maquinário militar (que salvava vidas de soldados) com guias para executar inimigos. A experiência que Eisner viveu em Saigon, quando o exército norte-americano ainda ocupava grande parte do território do Vietnã do Sul, foi determinante ao mostrar-lhe o horror do campo de batalha real, uma vez que a experiência militar de Eisner ainda era muito limitada ao serviço burocrático e administrativo nos centros nervosos das Forças Armadas, dentro dos próprios Estados Unidos. Eisner estava passando por uma séria reavaliação sobre sua experiência com a produção para o Governo nesse sentido.
A grande mudança, porém, que o trouxe de volta para o ramo dos quadrinhos se deu em 1971. Convidado pelo organizador Phil Seuling para participar de uma convenção de leitores dos novos comix, revistas de linha independente com teor adulto e que eram distribuídas e vendidas em lojas de medicamentos farmacêuticos até então ilegais no país, e do material clássico publicado nas revistas e suplementos de quando seus pais eram crianças, Eisner demonstrou interesse em ver como o mercado estava se reestruturando diante da nova realidade da sociedade. Lá, ele conheceu o jovem editor Denis Kitchen, que viria a se configurar como um dos grandes nomes do quadrinho underground pelo seu trabalho diferenciado como editor do ramo (seu esquema de distribuição para as lojas, sua política de pagamento de royalties aos autores, além da devolução dos originais para os devidos responsáveis por eles e a manutenção particular dos direitos autorais). Juntos, Eisner e Kitchen chegaram a um acordo para republicar a saga do
Spirit, aproveitando a onda de interesse dos leitores por conteúdos que transgredissem as normas vigentes nos quadrinhos das grandes editoras como a Marvel e a DC já o eram. Kitchen, que já publicava histórias de Robert Crumb, Harvey Kurtzman e Art Spiegelman, ficou extasiado de felicidade com a oportunidade de trabalhar com uma das lendas vivas do quadrinho na Era de Ouro como era Eisner (o pioneirismo de Eisner, inclusive, foi comentado também,
aqui no blog), e este se viu animado em participar de uma nova etapa do mercado editorial de revistas, que passava por uma repaginação de forma estrutural e temática.
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Denis Kitchen, em frente à entrada para a exposição de Will Eisner, na Rio Comicon de 2011 |
Poucos anos depois, Eisner acabou transferindo a publicação para a empresa do editor Joe Warren, a Warren Publishing, com quem já havia trabalhado mais de uma década antes e havia autorizado republicar algumas de suas histórias do Spirit na revista de humor ''Help!''. Comandado por W. B. DuBay, editor que já havia conhecido Eisner em uma entrevista de emprego para a ''P*S Magazine'', Eisner viu a publicação bimestral das histórias de Denny Colt decolar. Kitchen ficou levemente ressentido pela perda do título de Eisner, mas compreendeu a opção do autor por uma empresa que pudesse publicar seu conteúdo em formato mais adequado em termos de tamanho, distribuição nacional e qualidade técnica, além de que Eisner recusara a oferta da Marvel para lançar seu personagem pelas exigências de conteúdo inédito e as burocracias recorrentes em editoras de maior porte. A amizade dos dois se manteve e rendeu frutos para a indústria de livros e revistas em 1974, quando, além de tornar a ser a responsável pela publicação do Spirit, a Kitchen Sink deu vazão aos primeiros experimentos de Eisner com material novo, como ''The Spirit's Casebook of True Haunted Houses and Ghosts'', livro de prosa narrado pelo personagem clássico sobre histórias de teor sobrenatural e fantasioso, e ''The Invader'', história inédita criada por Eisner junto de jovens aspirantes a quadrinistas para o Spirit.
Em 1978, Eisner já dava aulas na School of Visual Arts, uma instituição em Manhattan dedicada às artes plásticas e comerciais, tinha seu próprio selo editorial, a Poorhouse Press, lançava regularmente material em torno do Spirit pela Kitchen Sink e conteúdo didático em quadrinhos pela Scholastic Books. Ainda assim, ele resolveu ir além da visão padronizada por quadrinhos e iniciou o mercado de graphic novels com ''Contrato com Deus'', material que carregava muita carga emocional do próprio autor em suas páginas acerca da perda de sua filha mais nova décadas antes (acontecimento que o marcou profundamente e que ele manteve em segredo até o lançamento, em 2006, de um volume especial incluindo esta obra e algumas outras de suas histórias passadas na Avenida Dropsie, no qual apresentou a sua experiência de perda pessoal de forma pública no prefácio deste). Publicada pela Baronet Books, após uma série de negociações editoriais, a obra revolucionou o mercado de quadrinhos apresentando-o ao universo literário presente nas livrarias. Passada a crise mercadológica experimentada pela obra com a dificuldade de sua categorização nos pontos de venda, os quais não sabiam se o colocavam entre as obras de cunho ficcional, aos materiais religiosos ou entre as revistas em quadrinhos tradicionais, o gênero revolucionou a indústria e apresentou uma vertente de potencial criativo que é observado e praticado com muito valor e qualidade até os dias de hoje.
A partir, então, da publicação do Spirit, que Eisner começou gradativamente a apresentar novas perspectivas que os quadrinhos ofereciam aos seus
profissionais, com um uso mais qualificado dos elementos
gráfico-textuais e posteriormente um desenvolvimento mais dedicado e profundo das histórias humanas apresentadas nos quadrinhos. A revolução da arte sequencial de Will Eisner se iniciou muito antes da sua cunhagem do termo, antes também do lançamento original da sua primeira graphic novel e antes, até, do amplo escopo potencial que a mídia oferecia em termos didáticos, contempladores e de entretenimento observado por Eisner. Tudo se iniciou na composição realista na qual formou seu único herói mascarado, muitas vezes mais coadjuvante das histórias que protagonista propriamente dito, mas sempre símbolo de justiça e luta pelos mais fracos.
O Planetário da Gávea, no Rio de Janeiro, irá realizar, em homenagem a essa data comemorativa dos três quartos de século do personagem de Eisner uma série de atividades no dia 15 de maio, a partir das 17h30. O evento contará com palestra, exibição de curtas e discussão com grandes nomes do meio gráfico como Carlos Patati, ávido estudioso da nona arte e roteirista; Ricardo Leite, designer responsável por produções de diversas frentes diferentes, desde capas de discos até a logomarca do Rio 450 anos; Marcelo Martinez, autor da capa da biografia
''Will Eisner - Um Sonhador nos Quadrinhos'' publicada em 2013 pelo selo Biblioteca Azul, da editora Globo; Marisa Furtado de Oliveira, diretora e produtora do elogiado documentário
''Will Eisner - Profissão Cartunista''; Heitor Pitombo, jornalista colaborador de diversas publicações acerca dos quadrinhos, entre elas, a revista
''Mundo dos Super-Heróis''; Esse Lobo, editor responsável pela antiga editora Barba Negra; e Roberto Ribeiro, diretor da Casa 21, que organizou as edições da Rio Comicon em 2010 e 2011 (ambas cuja cobertura completa pode ser conferida
aqui no blog). Prevista para durar até o fechamento do Planetário, às 22h, o evento busca destacar o feito do personagem e as revoluções promovidas na mídia por seu criador. A entrada e o estacionamento serão gratuitos e o convite é estendido a todos os interessados em aprender um pouco mais da história dos quadrinhos e/ou admiradores da arte sequencial que queiram comemorar juntos essa marca tão especial. A página do evento no
Facebook pode ser conferida
aqui, e quaisquer dúvidas acerca dele podem ser esclarecidas por lá.
A quem mais tiver interesse de saber um pouco mais sobre o período entre 1940 e 1952 de Will Eisner a cargo do
Spirit, vale conferir o interessante artigo de Michael Barrier, que pode ser conferido, em inglês,
aqui.