sexta-feira, 1 de maio de 2015

Sobre o Papel das Editoras na Formação de Novos Leitores

Por Gabriel Guimarães

 

Esta semana um assunto importante voltou à tona em meio a discussões recentes sobre a educação no cenário brasileiro. O quadrinista Orlando Pedroso, em sua coluna no site Uol (que pode ser conferida aqui), redigiu uma crítica à falta de estrutura encontrada no mercado editorial do Brasil. Comentando sobre o grande papel desempenhado no comércio livreiro pelos programas estabelecidos pelo Governo, ele aponta os riscos e os problemas que o mercado está tendo que encarar diante da recente redução nos investimentos feitos nessas plataformas. Traçando uma análise histórica, ele observa a dependência que muitas editoras passaram a ter em cima desses programas e critica de forma direta a falta de participação das editoras na formação de um público leitor que capacitasse um mercado livreiro mais qualificado e independente das intervenções governamentais. Seu artigo, porém, levanta uma discussão interessante que precisa ser devidamente expandida no cenário cultural e econômico brasileiro.

Em primeiro lugar, é importante destacar o papel desempenhado pela publicação de conteúdo didático e paradidático dentro da gestão de uma editora. Para os profissionais do livro, esse material é a base na qual a maioria das principais empresas do setor tem a possibilidade de encontrar uma estabilidade financeira que lhes permita, reinvestindo seu capital, publicar obras de outras naturezas, como ficção, arte, esporte, lazer, além de conteúdo educativo de grau mais específico academicamente. A composição do catálogo de títulos disponíveis em uma editora se compõe levando em consideração essa hierarquia necessária para se construir uma empresa financeiramente sustentável, trazendo, assim, um destaque ao segmento didático para apresentar, quando possível, a produção de obras menos prestigiadas em termos de custo. Dentro do cenário cultural que se apresenta em nosso país, o mercado é limitado demais para que as editoras ajam de forma alheia a essa hierarquia na hora de estabelecer uma política de prioridades administrativas. Ou seja, programas como o PNBE (Programa Nacional Biblioteca na Escola) e o PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) auxiliam não apenas na distribuição de mais conteúdo às escolas ao redor do Brasil, como também incentivam uma gestão financeiramente mais viável para as editoras, possibilitando, assim, que elas possam pegar o capital captado dessa maneira em novos conteúdos e na própria expansão do público leitor.


Orlando critica que as editoras ficaram acomodadas a essa estrutura e deixaram de trabalhar na linha de frente da montagem de um novo público leitor, encarando, então, um cenário caótico diante dos problemas envolvendo o investimento feito pelo Governo na edição dos programas, com ênfase na alarmante suspensão do PNBE de 2015. Os conflitos vão desde a troca da banca avaliadora do conteúdo submetido pelas editoras no edital lançado pelo Ministério da Educação, que desde 2005 era responsabilidade do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita, da Universidade Federal de Minas Gerais (CEALE-UFMG), em um processo estagnado pela burocracia governamental que atrasou diversas vezes a data de divulgação da nova instituição selecionada, até o atraso no pagamento às editoras pelo material adquirido no PNLD, conforme destacado pela jornalista Raquel Cozer no jornal ''Folha de São Paulo'' (matéria que pode ser conferida aqui). Diante desse cenário, o mercado apresentou reticências quanto ao avanço econômico nas livrarias, experimentando uma queda de 4,75% em relação ao primeiro trimestre de 2014.

Por conta dos atrasos na seleção de material para ser distribuído aos colégios de primeiro e segundo grau, os livros não puderam ser entregues aos alunos que fariam uso deles e aos professores que os utilizariam como instrumento pedagógico. Se em 2013, o PNBE distribuiu 7,4 milhões de livros a quase 70 mil escolas, o cenário que se apresenta é basicamente ausente em 2015 (dados apresentados pelo profissional do jornal ''O Globo'', Lauro Neto, cujo artigo pode ser conferido aqui e cuja discussão se iniciou em matéria da colega jornalista Graça Ramos, que também pode ser conferida aqui). A partir disso, é possível ver que o prejuízo com toda essa situação não é apenas financeiro, mas um sintoma que denota a falta de privilégio que o governo tem para com a educação. As editoras, acusadas por Orlando de agirem de forma displicente com os leitores, em função de tirarem 37% de todo o seu rendimento dos acordos com a administração federal e estatal, são tão vítimas quanto podem ser consideradas potencialmente culpadas.

O Brasil vinha experimentando um crescimento considerável na indústria do livro nas últimas décadas, com novos autores e novas editoras surgindo tanto com conteúdo físico como virtual. Desde que o PNBE foi instaurado em 1997, ele e o PNLD compreendiam 90% do investimento em livros feitos pelo Governo. Por meio desses programas, as editoras tiveram maior oportunidade de crescer e gerar empregos, além de alcançar uma quantidade maior de jovens e fomentar neles o gosto pela leitura. Apesar de Orlando apontar corretamente que a mera entrega do produto livro nos colégios não assegura a formação de um público leitor, é necessário indagar sobre as razões dessa discrepância. O papel dos professores nas redes de ensino e das famílias dentro de casa são elementos que carregam um grande peso na estruturação de um pensamento acerca do valor de saber ler e escrever, e ao aprendizado que essas atividades podem levar ao indivíduo. Conforme destaca o antropólogo amazonense Felipe Lindoso em seu livro ''O Brasil pode ser um país de leitores?'', o professorado brasileiro encontra uma ampla diversidade de aplicações que os programas de incentivo à leitura não são capazes de se adequar em função da ausência de uma grade curricular padronizada pelo Governo Federal às esferas estatais. A rede de ensino brasileira é difusa em muitos sentidos, e encontra as limitações socioeconômicas e tecnológicas como entraves para um trabalho produtivo, relevante e consciente. As mídias mais visadas no país são as de natureza audiovisual e o conteúdo apresentado ali não estimula um aprofundamento no prazer do aprendizado e da inovação, muito pelo contrário, opta, em sua maioria, por repetir fórmulas e privilegiar a superficialidade das personalidades públicas.

Estande da editora Leya na CCXP 2014
As editoras de livros, contudo, vem se mostrando atentas às novas nuances do mercado, encontrando em eventos como as Feiras Internacionais do Livro ou a ComiCon XPerience oportunidade de criar um vínculo com potenciais leitores. Dessa forma, investem na montagem de estandes e na divulgação pelas redes sociais, por onde seus admiradores podem compartilhar experiências e ampliar o conteúdo publicado de forma literária em um agradável complemento para enriquecer suas vidas, direta e indiretamente. Tal qual ocorreu com a transição do foco da indústria fonográfica que era voltado para a venda de discos e passou a priorizar o comércio de experiências (ao invés de lucrar mais com o produto físico, a indústria passou a dar mais atenção a shows e encontros com fãs, que pagavam por algo particular que não poderia ser massificado, a experiência de estar lá), as editoras não apenas brasileiras estão passando por uma transição geral. Os leitores estão se consolidando cada vez mais como seres de natureza multifacetada e cuja atenção carece de ser captada em diferentes frentes, sempre com uma estimulando a outra; algo que os editores estão percebendo e, dessa forma, já vem trabalhando a respeito.

Trabalhos vem sendo bem realizados por editoras como a Draco, que vem investindo em autores nacionais dos gêneros de ficção científica e fantasia, que quase não tinham espaço no Brasil, a Balão Editorial, que investe em autores de quadrinhos nacionais em formatos que privilegiem a história em si mais do que apenas uma visão lucrativa do produto, e a Novo Conceito, que vem aproveitando as mídias sociais para descobrir novos autores e lançar conteúdo inédito no mercado impresso, fora as já tradicionais JBC e Panini. Enquanto esta primeira investe bastante tempo nas mídias digitais e vem organizando o Brasil Mangá Awards, premiando os vencedores com a publicação de suas histórias em uma edição intitulada ''Henshin Mangá'', com mesmo acabamento gráfico que os volumes vindos do Japão; a Panini tem se tornado ponto de referência nos eventos de larga escala da cultura pop no Brasil, além de lançar no mercado conteúdo alternativo dos autores convidados pelos estúdios MSP a tomar parte no selo editorial de graphic novels com os personagens criados por Maurício de Sousa, como foi o caso dos volumes de ''Valente'', série de tirinhas do quadrinista mineiro Vitor Caffagi.

O descaso despendido aos problemas consequentes da perda dos programas de incentivo do Governo às editoras e à rede de ensino público é um erro grave, uma vez observados os seus desdobramentos. Tanto editoras de larga escala quanto as menores estão sofrendo as consequências disso, tendo que diminuir a projeção de 1ivros a serem publicados no ano e diminuindo o plantel de profissionais empregados, como é o caso da editora Melhoramentos, que vai precisar reduzir o número de títulos que lançaria de livros este ano de 230 para 180. Uma redução pesada em termos culturais e financeiros.

Página da revista "X-O Manowar", da linha Valiant
Uma vez apresentado o contexto, a crítica de Orlando parece um tanto injusta, mas é necessário também lembrar que existem editoras que não encontraram ainda um ponto certo de equilibrar sua participação no mercado, como foi o caso recente da linha Valiant, publicada pela HQM. Ao cancelar seus títulos por falta de procura do público leitor, a editora assumiu o discurso de que há uma crítica sobre a falta de material intelectualmente estimulante no mercado de bancas de jornal, mas quando se lança um conteúdo novo que pode suprir essa necessidade, o público e a mídia não se mobilizam para que a empreitada dê certo. Essa crítica é embasada nos números de vendas que a editora recebeu e que lhes deixou no prejuízo financeiro. O trabalho, contudo, que foi realizado com os quadrinhos do selo Valiant, apesar de graficamente estar impressionante, foi extremamente limitado por uma regularidade inconstante nas bancas de jornal e uma confusão provocada por um elemento que poderia até estimular o público especializado: as capas alternativas. A editora deveria ter se movimentado para se aproximar dos sites especializados e marcado presença nos eventos do segmento de forma mais assertiva, mesmo que se limitasse a tomar parte em palestras sobre a mídia no Brasil, como outras vem fazendo muito bem nos últimos anos. As páginas dedicadas aos quadrinhos poderiam ter colaborado mais para ajudar essa linha de títulos a encontrar sucesso no país (até levando em conta que trata-se de um conteúdo que recentemente foi apontado para ser levado às grandes salas de cinema nos próximos anos), mas não se pode assumir o discurso radical de que as pessoas deveriam saber melhor o que fazem. A HQM já voltou atrás do cancelamento de seus títulos para uma discussão mais aberta sobre como tornar sua publicação sustentável financeiramente, o que pode, inclusive, beneficiar em muito o mercado e a própria editora (algo que pretendemos abordar de forma mais dedicada em outra matéria futura aqui no blog).

O ProAc é um exemplo de programa que precisa crescer
Em suma, as consequências são sentidas por todos os lados, não adianta buscar um bode expiatório. É necessário apenas procurar aprender com os erros e corrigi-los enquanto existe essa possibilidade. O fomento de novos leitores, portanto, até pode pesar sobre as responsabilidades das editoras, mas a carência recente disso é fruto de má gestão administrativa do Estado e omissão optativa do Governo, trabalho inconsequente das mídias sensacionalistas e falhas consideráveis de divulgação quanto a eventos do mercado literário (não as feiras internacionais, mas os eventos de pequeno e médio porte, que justamente ajudam o mercado a continuamente se renovar). Em uma sociedade, não são apenas as glórias que devem ser partilhadas após uma encruzilhada, mas o peso das decisões erradas também. E o que se deve aproveitar disso é identificar as formas de melhor aprimorar os procedimentos tomados por todas as partes envolvidas. Os problemas com o PNBE e o PNLD precisam ser abordados com a devida seriedade, tanto pelos profissionais do livro, em todas as suas etapas (desde a autoria até o consumo, inclusive), como por aqueles que desejam ver nossa sociedade brasileira ter melhores condições socioeconômicas como um todo, porque a cerne de todo esse processo está na educação. Programas, ainda, como o Proac, em São Paulo, precisam continuar relevantes e serem adotados por outros estados, a fim de que, estimulando a produção cultural, o povo possa se sentir melhor representado na mídia e compreender suas responsabilidades para que receba seus direitos e possa executar de forma adequada sua função na sociedade.


É necessária, ainda, uma educação apropriada para estimular a leitura e o aprendizado, e não apenas o estabelecimento de uma grade de etapas a serem cumpridas para que o indivíduo seja inserido em uma sociedade que não se leva a sério o suficiente para garantir a valorização de sua cultura e da formação de seus membros. A responsabilidade pelos problemas que estão ocorrendo é de todos nós, e cabe a cada um questionar honesta e razoavelmente o que poderia fazer para ajudar-nos a melhorar. Sempre como um todo, vale ressaltar. Apenas assim, talvez possamos ter um futuro digno e com boas promessas de igualdade.

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