Por Gabriel Guimarães
Há três anos, a editora Conrad publicou uma história em quadrinhos sobre a vida do marinheiro que iniciou o movimento social que veio a ser conhecido como a Revolta da Chibata em 1910, João Cândido, ou, como era mais conhecido, o Almirante Negro. A obra trata-se de "Chibata!", produzida pelo roteirista Olinto Gadelha com belíssimos desenhos de Hemeterio, ambos nascidos em Fortaleza, capital do estado do Ceará. À época, a qualidade do material chamou bastante atenção nas livrarias, tendo talvez o uso do contraste entre luz e sombra sido o seu grande trunfo visual.
Com um estilo que oscila entre o realista e o cartunesco, ainda que sempre com uma profunda riqueza de detalhes, a história cativa o leitor e o prende a uma grande trama que envolve o povo brasileiro no começo do século XX. Usando muito de estilos diferentes de hachura (técnica caracterizada pela repetição de traços para criar impressão de profundidade ou para dar sensação de sombras e tons), os desenhos de Hemeterio são simplesmente apaixonantes, e o tratamento que ele dá às referências históricas é algo, no mínimo, impressionante, vide a referência que faz ao jornalista Aparício Torelly, que já encapou edição da revista "Almanhaque", onde fora entitulado "O Barão de Itararé", e cuja representação nessa capa mencionada é idêntica àquela foi usada nessa história em quadrinhos.
Para os bons leitores de histórias em quadrinhos, essa obra não pode faltar à coleção, pois simboliza bem o quanto uma história real brasileira pode emocionar, se contada de forma instigante e sensível. Falo com certeza que essa obra possui um grau de destaque dificilmente encontrado nas obras brasileiras, e a admiro muito por isso.
Tendo sido feita essa introdução, vamos ao cerne que motivou essa matéria. O jornal O Estado de São Paulo divulgou em matéria hoje que o dramaturgo e diretor de teatro César Vieira, pseudônimo do advogado Idibal Piveta, ganhou um processo em 1ª instância contra a editora Conrad sob a alegação que trechos da história em quadrinhos "Chibata!" foram copiadas de sua peça "João Cândido do Brasil - A Revolta da Chibata", inclusive nomes de personagens e ambientes fictícios.
Iniciada em maio de 2010, a ação ainda estipulou o pagamento de indenização por danos morais e materiais, em função da distribuição e comércio de duas edições da obra, além do recolhimento de todas os volumes disponíveis no mercado destas. A editora, em resposta, afirmou que recorrerá da decisão da juiza da 2ª Vara Cível do Fórum de Pinheiros, alegando que a HQ se baseia em dados históricos. Um tanto independente do resultado, levantou-se com essa disputa uma questão, que passou a ser discutida depois da divulgação da disputa judicial: a responsabilidade de publicar uma história de teor original que não fira a integridade de outras obras e autores que já discorreram previamente sobre o assunto que esta aborda é de quem, principalmente? Ela é obrigação dos produtores da obra (roteiristas, desenhistas, arte-finalistas, etc) ou deve ser algo a cargo da editora que publica a história?
Arte de Alex Ross para o Batman, mostrando seus ferimentos de batalha |
No Brasil, as editoras claramente têm em mãos uma capacidade de se defender contra esse tipo de acusação muito melhor do que os produtores individuais das obras, e a forma como se dá a disseminação de uma influência aqui é algo que merece um olhar muito atento, uma vez que em meio a uma miscigenação cultural tão grande, as obras que são criadas sempre acabam usando de referências encontradas em outros materiais publicados ou encenados previamente com os quais os autores tiveram contato. A página 40 de "Chibata!", por exemplo, eu vejo claramente como resultado da influência do desenho que o artista norte-americano Alex Ross produziu para o personagem Batman exposto ao lado, porém, uma alegação de plágio nesse caso seria algo um tanto radical, a meu ver, uma vez que quando se pesquisa imagens sobre a chibata, encontra-se esta que destaquei aqui entre elas, que também pode ser fácil e igualmente atribuída como referência para a página da HQ. Caso as acusações de Vieira quanto ao uso impróprio de suas criações e diálogos sejam confirmadas, caberá uma nova discussão sobre estes termos de responsabilidade que descrevi, e com certeza atentaremos para um diálogo em que ambos os lados da história estejam em pé de igualdade, a fim de que quem vença no final das contas seja o patrimônio cultural a que todos temos direito.
De qualquer forma, essa notícia é importante para o mercado editorial como um todo atualmente, pois a ocorrência de plágio é algo extremamente nocivo para quem sofre a partir dele e principalmente para quem o pratica, e é preciso que hajam medidas para evitá-lo. Ainda assim, acrescento: apesar desses pontos destacados que pesam no pré-julgamento da obra "Chibata!", permaneço com minha opinião de que se trata de uma obra nacional com altíssima qualidade e que merece ter seu reconhecimento como produto cultural. Aos que não tiveram ainda contato com ela, recomendo que o façam, pelo menos enquanto ainda há tempo.
2 comentários:
Achei muito interessante o post. Fiquei com vontade de ler esta HQ.
"Chibata!" realmente é uma HQ de alta qualidade produzida no Brasil, e se você quiser mesmo le-la antes que a justiça recolha todas as edições disponíveis ainda no mercado, Tássia, aconselho que você corra, infelizmente. Enquanto isso, torcemos para que tudo se resolva bem entre as partes nessa disputa judicial e que, em breve, essa excelente história em quadrinhos possa novamente estar à venda nas livrarias ao redor do país e nas bibliotecas escolares.
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