Por Gabriel Guimarães
No começo do Século XX, a humanidade testemunhou um período muito complicado, onde os conflitos internacionais ganhavam proporção antes inimaginável, afetando todos os habitantes do planeta de alguma forma, direta ou indiretamente. A partir desse momento, muitas editoras viram que o espírito nacional de seus países carecia de algo que lhes motivasse a continuar lutando. Artistas como Will Eisner, principal responsável pela publicação do título "P. S. Magazine", de 1951 a 1971, e Joe Kubert (que recebeu uma devida homenagem póstuma aqui no blog), eterno grande nome das histórias de guerra com o personagem Sgt. Rock, pela DC, dedicaram grande parte de suas carreiras à narrativa de eventos relacionados a esses desastres, procurando sempre focar no fato de que há uma maneira melhor de resolvermos nossas diferenças do que apenas empunhando armas e julgando os outros. Histórias como a graphic novel "VietSong", produzida pelo espanhol Manfred Sommer, com claras influências no trabalho do italiano Hugo Pratt, ainda abordavam uma humanização dos personagens envolvidos nos conflitos, trazendo à tona o que havia no mais interior de seus seres e de suas histórias de vida.
A sequência de eventos catastróficos como as guerras acabaram afetando a percepção do indivíduo enquanto parte de uma sociedade, o que repercurtiu de forma estrutural na gestão do mercado editorial de quadrinhos, em especial, no norte-americano, ganhando desdobramentos extremamente importantes para a história do meio. Com a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os personagens que serviriam para dar esperança às nações envolvidas não mais poderiam ser apenas meros mortais, precisando ter poderes maiores do que as limitações humanas permitiam, produzindo, dessa forma, a primeira geração de super-heróis, a partir do Superman, de Jerry Siegel e Joe Shuster, em 1938. Hoje, toda a indústria originada desta necessidade representa grande parte das vendas no mercado da arte sequencial como um todo, uma vez que as motivações dos personagens foram se adaptando aos novos tempos e novos conflitos socioculturais. Passando pelo conflito interno de igualdade entre as raças até batalhas perdidas e esperanças destruídas, como a Guerra do Vietnã e a revelação do horror dos campos de batalha, os quadrinhos de herói seguiram as deixas que a sociedade apresentava e, dessa forma, se tornaram referência para todas as gerações de leitores que surgiram posteriores à criação dos protagonistas das histórias em si. Vale destacar aqui também a história espetacular criada em 1985 pela dupla britânica Alan Moore e David Gibbons, "Watchmen", que leva o questionamento da guerra aos seus últimos estágios, abalando toda a estrutura da moralidade e da ética com que os heróis da sociedade sempre eram percebidos (essa obra já foi analisada uma vez no blog, o que pode ser conferido aqui).
Atualmente, continuamos sendo testemunhas de muitos conflitos no mundo, seja na recente Guerra do Iraque, nos problemas políticos dentro do Irã ou mesmo nos conflitos territoriais africanos. E as histórias em quadrinhos não deixaram de servir como meio para abordar o tema. A graphic novel "Paraíso de Zahra", de Amir e Khalil, pseudônimos dos verdadeiros autores, conta, por exemplo, a jornada de um jovem iraniano à procura de seu irmão, desaparecido em meio a uma manifestação popular numa das maiores praças do país. Os quadrinhos do repórter da nona arte, Joe Sacco, são óbvios exemplos disso também, basta observar a forma como conduz suas narrativas e o preciosismo que ele dispõe em cada informação coletada pessoalmente nas zonas abaladas pelas guerras, como a região de Sarajevo, Bósnia e na própria Palestina.
Há, porém, outra corrente na abordagem da guerra nas histórias em quadrinhos, que se constitui pela apresentação histórica ou fantasiosa acerca de como os eventos do passado se deram ou poderiam se dar, e seus respectivos reflexos na nossa sociedade nos dias de hoje. A história brasileira "Jambocks!" é um excelente caso, que se foca na participação do Brasil na Segunda Guerra Mundial. Escrita pelo talentoso e afinco pesquisador Celso Menezes e cujos dois primeiros volumes foram desenhados pelo espetacular Felipe Massafera, a história apresenta bases muito bem fixadas nos eventos reais e dá ao leitor a oportunidade de compreender um pouco melhor a natureza de certos frutos dessa participação brasileira que até hoje são percebidos em nossa cultura, como o surgimento da música forró, a partir de comemorações realizadas entre o povo nordestino e os soldados norte-americanos nas bases e casas do estado do Rio Grande do Norte, enquanto os americanos ensinavam os brasileiros como utilizar de forma apropriada os aviões de guerra. Oriundo da expressão "for all", as músicas populares na região ganharam um contexto que viria a ser utilizado por todo um gênero de música popular, anos depois.
Entretanto, nossa matéria de hoje procura comentar acerca de duas obras em particular. Ainda que consistam de uma abordagem fantasiosa sobre um evento real e uma abordagem realista para um evento fantasioso, o teor de ambas demonstra raíz em toda a relação entre a guerra e os quadrinhos e, por conta disso, não poderia vir a ser apresentado sem a devida contextualização.
"Arrowsmith - A Guerra da Magia", produzida em 2003 pela dupla consagrada composta pelo roteirista Kurt Busiek e o desenhista mexicano Carlos Pacheco, e publicada aqui no Brasil em 2005, pela editora Devir, conta também a história da Primeira Guerra Mundial, porém, sob um prisma diferenciado pela magia enquanto elemento das narrativas clássicas da Era Medieval. Em um mundo onde seres mágicos dividem espaço com pessoas normais, a forma de organização social e o desenvolvimento tecnológico dão lugar a uma estrutura bastante diferente do mundo real.
Apresentado de maneira primorosa pelos desenhos de Pacheco, com uma bela adaptação construída pela mente de Busiek, a história se desdobra no período de amadurescimento da guerra, que subentende-se à aceitação da morte de companheiros de equipe, à separação das origens simples com os novos cenários que se apresentam nos campos de batalha, e à compreensão de questões como sacrifício próprio, físico ou ideológico, em prol de um bem maior. Com uma história sensível em meio aos espólios da guerra, "Arrowsmith" leva o leitor a um mundo mágico cheio de dragões, entes, atlantes e feitiçaria, mas que, ainda assim, se assemelha ao nosso mundo pacato, pelo drama dentro de cada um de seus personagens, e pelas tragédias e descobertas ao longo dessa jornada.
Em "ShockRockets - Esquentando os Motores", produzido pelo mesmo roteirista, Kurt Busiek, mas com traços do canadense Stuart Immonen, em 2000, apesar de ter sido publicado no Brasil apenas em 2006, pela editora Pixel, a narrativa parte no outro sentido, inteiramente. Em uma realidade futurista, a partir do ano de 2071 ou 2087 (não fica muito claro, por conta de algo que aparenta ser uma confusão editorial na apresentação da edição brasileira), o jovem protagonista latino Alejandro Cruz se une por uma jogada do destino à última linha de defesa da sociedade global contra as hordas do vilão Emílio Korda, que carrega em si o desejo mais clássico dos vilões das histórias em quadrinhos, literalmente dominar o mundo. Armados principalmente por suas naves, a tropa de defensores, que dá nome à obra de Busiek e Immonen, eles precisam superar suas diferenças e unir seus pontos fortes para garantir que o planeta não seja tanto acometido pelas forças do vilão quanto por uma nova invasão alienígena, que já havia ocorrido anteriormente ao começo da história e causara uma reconstrução completa da identidade nacional, após sua dispersão.
Com intrigas e traições, a história empolga até sua última página, que deixa em aberto a possibilidade de uma continuação e ainda realiza uma crítica concisa sobre a gestão de uma guerra. Dando ênfase também aos conflitos entre a origem simples do protagonista e toda a maravilha tecnológica com que ele aprende a trabalhar para sobreviver no conflito, a história se assemelha muito ao outro trabalho de Busiek.
As similaridades entre essas histórias, que refletem muito do espírito do começo dos anos 1930, são a principal razão desta matéria. Busiek, em ambos os casos, trabalhou de forma inteligente a identidade de seus personagens principais, como jovens provenientes do gueto ou de uma comunidade rural, mas que tinham consciência e desejo de participar de conflitos extremamente importantes para todo o mundo, que aconteciam em terras distantes daquelas onde estavam. Com ânimo, ambos aproveitam a oportunidade de se alistarem como forma de reafirmar suas identidades e tomar parte no conflito, porém, à medida que se vêem envolvidos pelos acontecimentos das guerras, perdem a noção de ideologia tão forte que carregavam antes para assumir uma carga emocional muito forte, em histórias que apresentam uma análise da solidão, do preparo psicológico e do relacionamento interpessoal durante momentos de conflito.
Minissérie original de "ShockRockets", publicada nos Estados Unidos |
Immonen e Pacheco dão o tom das obras de forma bastante particular, cada um com seu modelo de narrativa preciso, mas, no cerne de tudo, há a questão principal do ser humano em si, e da sua relação com o conflito com outros diferentes dele.
Apresentando ainda em seu conteúdo da edição nacional, algumas artes originais entre os capítulos que caracterizaram a venda em forma de minissérie, nos Estados Unidos, as versões brasileiras ficaram com uma boa qualidade e valem a pena serem conferidas pela emoção vividas pelos personagens e pelas maravilhosas cenas de batalha.
NOTA GERAL ("ARROWSMITH"): 3 ESTRELAS.
NOTA GERAL ("SHOCKROCKETS"): 3 ESTRELAS.
Um comentário:
Nunca havia lido nenhuma HQ de guerra até pegar uma "Sargento Rock" (versão Novos 52). A proposta é interessante, mas achei a edição em si fraca. Estava querendo mesmo umas sugestões melhores sobre a temática. Acho que vou experimentar algumas dessas aí... E a lista só aumenta... hehehe Abraços!
Postar um comentário