Por Gabriel Guimarães
A primeira metade do século XX foi um período extremamente marcante para a história da humanidade. Ocorreram duas guerras mundiais, que causaram a morte de milhões de jovens soldados de ambos os lados das trincheiras, o mundo viu a maior potencial econômica global quase colapsar com a quebra de sua bolsa de valores e ações e a bomba atômica foi lançada nas cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, mostrando até onde ia os limites da crueldade e brutalidade do homem. Foi um período bastante obscuro que até hoje mostra reflexos no convívio social entre diferentes nações ou mesmo entre partes distintas de uma mesma nação. E foi no cenário da crise financeira, que destruiu vidas e famílias e interrompeu sonhos e trajetórias, que os quadrinhos da DC comics começaram a crescer nos Estados Unidos, mas fica uma pergunta curiosa a ser feita: como, em meio a tamanho revés financeiro, surgiam investimentos para a publicação das ascendentes revistas de histórias em quadrinhos, consumidas aos montes pelas crianças, jovens e adultos dos grandes centros urbanos?
Harry Donenfeld (à esquerda da foto), numa das gravações do programa de rádio do Superman |
Apesar de ser um assunto um tanto polêmico, esse momento se deu ao suporte fornecido por um homem cujos negócios não eram necessariamente às claras, porém, cuja intenção para com o meio foi imprecindível para o desenvolvimento e popularização deste. Trata-se do homem de negócios de origem judáica cujos documentos sobre seus primeiros trinta e cinco anos de vida são inexistentes, apesar de supostamente lhe qualificar como perito em administração, o romeno-americano Harry Donenfeld. Cheio de histórias para contar e com contatos em todos os cantos da cidade de Nova York, Donenfeld teve um papel fundamental para a editora que posteriormente publicaria os primeiros super-heróis da história dos quadrinhos, sendo um dos grandes entusiastas das revistas de pulp fiction, histórias normalmente trabalhadas de forma superficial sobre o submundo do crime e da investigação policial e particular, muito comuns naqueles tempos de pobreza e desilusão. Talvez fosse pelo temperamento absorto do empresário e sua obsessão pelos negócios, que o tornava muito difícil de lidar pelo espectro dos funcionários que criavam os títulos da editora, como no caso dos criadores do Superman, Jerry Siegel e Joe Shuster; ou pelas polêmicas acerca de seu oportunismo e lábia comercial, aliada a pagamentos por debaixo dos panos por pontos de venda preferenciais para suas publicações, como a sua revista "La Paree" nos teatros de revistas, por volta de 1933, Donenfeld era visto como uma pessoa difícil de lidar, e uma referência de alto risco para quem observava o mercado editorial americano, sendo, dessa forma, sempre mantido como um sócio secreto da editora DC.
A origem de Donenfeld, porém, é o que liga toda essa contextualização para a matéria de hoje. Tendo sido membro de praticamente todas as gangues do East Side de Nova York, o homem de negócios acabou por desenvolver uma rede de contatos um tanto preocupante para os seus parceiros formais de editora, como o aclamado editor-chefe Jack Liebowitz. A história da vida de Donenfeld reflete bem os tempos em que as pessoas estavam inseridas, onde a necessidade de sustento muitas vezes as levavam a destinos jamais imaginados originalmente, numa estrada para a perdição.
Edição nacional da HQ, publicada pela editora Via Lettera, em 2002 |
Em 1998, o roteirista Max Allan Collins e o desenhista Richard Piers Rayner fizeram uma sensível história sobre o reflexo desses tempos em pessoas diretamente ligadas ao submundo do crime, mais especificamente à máfia gerenciada pelos imigrantes irlandeses e sua relação com grandes grupos ligados ao comércio ilegal de álcool, em tempos de lei seca. A história "Estrada para Perdição" narra os laços entre um pai e um filho que transcendem os de uma hierarquia profissional, à exemplo do excelente mangá "Lobo Solitário", de Kazuo Koike e Goseki Kojima (que já foi comentada aqui no blog antes), que influenciou fortemente a obra da dupla americana.
Centrado em Michael O'Sullivan Junior e seu homônimo pai, a história parte do momento mais sombrio na vida da família do braço direito de uma das maiores gangues mafiosas das três cidades do condado de Rock Island, liderada pelo experiente John Looney. Depois de uma negociação que deu errado pela imaturidade de Connor Looney, filho de seu chefe, O'Sullivan pai, renomadamente conhecido como Anjo, acaba descobrindo que fora traído pela hierarquia da qual fazia parte como forma de limpar a reputação do protegido da linhagem, e encontra sua esposa e filho mais novo assassinados dentro de sua própria casa.
Em uma busca intrépida pela justiça com sua própria família, gerando para o leitor uma discussão acerca do conceito de "família", tão tradicional no ramo da máfia, O'Sullivan revela as facetas de uma pessoa real por baixo do terno com que realizava seus trabalhos de assassino mandado, e provoca momentos de tremenda carga emocional, sobre mais do que um personagem a seguir suas diretrizes, mas sim de uma pessoa e suas pretensões e expectativas.
Envolvendo nomes reais do contrabando ilegal na década de 1930, como Al Capone, a obra ganha um teor histórico incrível, reforçado em muito pelos traços impressionantes de Rayner, que dá o tom perfeito para a trama, prendendo o leitor e se destacando nos detalhes preciosos em cada cena e nas expressões faciais extremamente realistas. Com muita ação e emoção, dando também atenção para a tradição religiosa dos irlandeses com a Igreja Católica, a obra é surpreendente e sua montagem enquanto peça editorial é algo que merece ser destacada. Sob a determinação dada no primeiro quadrinho da história, de que a trama é apresentada em preto e branco pois se trata de recordações, que, tal como os sonhos de algumas pessoas, não têm cor, a produção do material fica perfeitamente encaixada, pois a aplicação de cor apenas tiraria a carga de peso da obra e seu tão importante conteúdo histórico.
A publicação nacional, feita pela editora Via Lettera em março de 2002, com capas do ainda "desconhecido" Gabriel Bá, ganha muito em termos de qualidade pelo uso do papel off-set que dá um tom de branco mais forte, destacando ainda mais o constrate de luz e sombra feito pelas incontáveis e milimétricas linhas de Rayner. Entretanto, o processo de colagem das páginas na primeira edição da trilogia de livros que constituem a história, é bastante frágil, tornando-o um material um tanto delicado de se mexer para não causar sua destruição física.
Pai e filho na jornada criada por um elo mais importante que a lealdade profissional |
NOTA GERAL: 4 ESTRELAS.
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