Por Gabriel Guimarães
Antonio Luiz Cagnin, Waldomiro Vergueiro, Sonia Bibe Luyten, Moacy Cirne e Álvaro de Moya, da esquerda para a direita, respectivamente |
Ontem, dia 11 de janeiro de 2014, o rol de estudiosos da nona arte perdeu um de seus grandes representantes nas terras tupiniquins. Aos 70 anos de idade, o professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, Moacy Cirne, faleceu após uma parada cardíaca decorrente de uma cirurgia a qual fora submetido para tratamento de hepatite, conforme noticiado à tarde pelas páginas online dos jornais "Tribuna do Norte" e "O Globo". Com uma vasta bibliografia dedicada ao estudo da arte sequencial, seus elementos semióticos e aspectos sociopolíticos, Cirne deixa um legado de importância incalculável para os admiradores das histórias em quadrinhos, que tiveram nele um de seus mais empenhados pesquisadores.
Autor de obras como "Bum! - A Explosão Criativa dos Quadrinhos" (1970), "História e Crítica dos Quadrinhos no Brasil" (1990) e "Quadrinhos, Sedução e Paixão" (2001), dentre tantos outros, Cirne nasceu na cidade de Jardim do Seridó em 1943, tendo se mudado para a parte baixa da rua Coronel Martiniano ainda aos 2 anos, na cidade de Caicó. Impressionado desde sempre pela dinâmica envolvente das revistas em quadrinhos que adquiria com seu vizinho Benedito, que trazia os materiais de Recife e os vendia frente à sua casa todas as quintas-feiras e admirado também pelas obras cinematográficas apresentadas no cinema Pax, Cirne iniciou uma carreira de grande destaque acadêmico, se tornando figura conhecida publicamente a partir de sua parceria com a editora Vozes, localizada em Petrópolis, no começo da década de 1970. Lá, ele exerceu a função de secretário de redação, aprofundando seus conhecimentos acerca da semiótica, da semântica e dos movimentos literários, ainda que já fosse parte fundamental da vanguarda artística que inaugurou o poema-processo enquanto forma de expressão, no ano de 1967.
Dedicando-se à poesia e ao estudo da narrativa gráfica, Cirne trabalhou em diversos artigos ao longo das décadas seguintes, trazendo para o leitor seu posicionamento firme quanto ao poder do formato em termos de divulgação ideológica e sua crítica acerbada sobre o predomínio norte-americano no consumo de quadrinhos nos mercados latinos. Sua análise sobre os elementos formadores da mídia, exemplificados majoritariamente por materiais europeus, foram de grande relevância para uma maior abertura dos campi universitários para os quadrinhos enquanto objeto de estudo. Seu último livro, "Seridó Seridós", que tratava de sua infância e formação nos arredores da ponte do Rio Barra Nova, à beira da estrada para o Itans, com muita poesia e sinceridade, foi lançado no último dia 14 de dezembro, e carrega em si talvez parte daquilo que compôs um dos maiores pesquisadores brasileiros da indústria de quadrinhos mundial.
Cena da história "Reco-Reco, Bolão e Azeitona", de Luiz Sá, recolorida digitalmente |
A notícia do falecimento de Cirne vem poucos meses depois da perda de outra importante figura no mesmo campo de estudo acadêmico. Fundamental no reconhecimento do artista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini como um dos precursores das histórias em quadrinhos enquanto meio de comunicação de massa, o professor Antonio Luiz Cagnin faleceu no dia 9 de outubro de 2013, vítima de um infarto fulminante durante uma reunião de colegas no Embu das Artes, em São Paulo. Nascido no bairro de Araras, Cagnin se apaixonou pela nona arte desde seu contato com a obra "Reco-Reco, Bolão e Azeitona", do desenhista cearense Luiz Sá, que participou da revista "O Tico-Tico" durante o período em que o conteúdo da revista que vinha do exterior sofria com atrasos e problemas de transporte decorrentes do período da Primeira Guerra Mundial. Cagnin, então, se empenhou no magistério, saindo de casa aos 15 anos para trabalhar no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, localizado em São José dos Campos, e dando aulas de línguas no tempo sobressalente.
Antonio Luiz Cagnin |
Durante seu período de pós-graduação na USP, a partir de 1972, Cagnin vivenciou com bastante gana o Congresso Internacional de Quadrinhos, realizado em São Paulo por artistas brasileiros, como o futuro estudioso Álvaro de Moya, fazendo contato com professores da França e da Itália acerca do estudo aprofundado da arte gráfica na narrativa de histórias, sendo posteriormente convidado para participar da Organização de Professores de Quadrinhos, organizada pelo professor Francisco Araújo, da faculdade de Brasília. Participante ativo nos congressos posteriores, realizados na Bordighera e Lucca, ambas em terras italianas, Cagnin viria a se tornar professor efetivo da USP apenas em 1984, no setor de semiologia na Escola de Comunicações e Artes.
Já tendo publicado em 1975 o livro "Os Quadrinhos", na série "Ensaios", da editora Ática, Cagnin encontrou na seção de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro "As Aventuras de Nhô Quim" e "As Aventuras do Zé Caipora", ambas produzidas pelo ítalo-brasileiro Ângelo Agostini e publicadas no jornal "Vida Fluminense", no ano de 1869. Observando mais atentamente o trabalho de Agostini, Cagnin se deu conta da aferição imprecisa do artista apenas como caricaturista, título que lhe fora atribuído devido ao estudo feito pelo contista e historiador Herman de Castro Lima sobre o tema, durante a década de 1960. Cagnin explorou o restante do material produzido por Agostini e conseguiu realizar, em 1994, uma exposição sobre o artista nas instalações da USP na rua Maria Antonia, com apoio do consulado italiano. A repercussão da exposição foi enorme, percorrendo várias cidades brasileiras , além de muitos pontos ao redor da Europa, onde hoje é guardada no Centro de Estudos do Bordalo Pinheiro, em Portugal.
Cirne e Cagnin foram homens que dedicaram muito de suas vidas ao reconhecimento da arte dos quadrinhos e de seus representantes, valorizando a contribuição humana e cultural promovida por esse meio, e o material que eles nos permitiram ter acesso hoje, é certamente uma ferramenta de valor inestimável para uma visão ampla e acertada sobre o cenário brasileiro no campo da produção na nona arte. Suas palavras farão falta, mas seu empenho, dedicação e, acima disso, seus sonhos de validação da mídia, permanecerão vivos em cada um de nós em nossa jornada.