domingo, 12 de janeiro de 2014

Sonho, Dedicação e Saudade

Por Gabriel Guimarães

Antonio Luiz Cagnin, Waldomiro Vergueiro, Sonia Bibe Luyten,
Moacy Cirne e Álvaro de Moya, da esquerda para a
direita, respectivamente

Ontem, dia 11 de janeiro de 2014, o rol de estudiosos da nona arte perdeu um de seus grandes representantes nas terras tupiniquins. Aos 70 anos de idade, o professor aposentado da Universidade Federal Fluminense, Moacy Cirne, faleceu após uma parada cardíaca decorrente de uma cirurgia a qual fora submetido para tratamento de hepatite, conforme noticiado à tarde pelas páginas online dos jornais "Tribuna do Norte" e "O Globo". Com uma vasta bibliografia dedicada ao estudo da arte sequencial, seus elementos semióticos e aspectos sociopolíticos, Cirne deixa um legado de importância incalculável para os admiradores das histórias em quadrinhos, que tiveram nele um de seus mais empenhados pesquisadores.
 
Autor de obras como "Bum! - A Explosão Criativa dos Quadrinhos" (1970), "História e Crítica dos Quadrinhos no Brasil" (1990) e "Quadrinhos, Sedução e Paixão" (2001), dentre tantos outros, Cirne nasceu na cidade de Jardim do Seridó em 1943, tendo se mudado para a parte baixa da rua Coronel Martiniano ainda aos 2 anos, na cidade de Caicó. Impressionado desde sempre pela dinâmica envolvente das revistas em quadrinhos que adquiria com seu vizinho Benedito, que trazia os materiais de Recife e os vendia frente à sua casa todas as quintas-feiras e admirado também pelas obras cinematográficas apresentadas no cinema Pax, Cirne iniciou uma carreira de grande destaque acadêmico, se tornando figura conhecida publicamente a partir de sua parceria com a editora Vozes, localizada em Petrópolis, no começo da década de 1970. Lá, ele exerceu a função de secretário de redação, aprofundando seus conhecimentos acerca da semiótica, da semântica e dos movimentos literários, ainda que já fosse parte fundamental da vanguarda artística que inaugurou o poema-processo enquanto forma de expressão, no ano de 1967.
 
Dedicando-se à poesia e ao estudo da narrativa gráfica, Cirne trabalhou em diversos artigos ao longo das décadas seguintes, trazendo para o leitor seu posicionamento firme quanto ao poder do formato em termos de divulgação ideológica e sua crítica acerbada sobre o predomínio norte-americano no consumo de quadrinhos nos mercados latinos. Sua análise sobre os elementos formadores da mídia, exemplificados majoritariamente por materiais europeus, foram de grande relevância para uma maior abertura dos campi universitários para os quadrinhos enquanto objeto de estudo. Seu último livro, "Seridó Seridós", que tratava de sua infância e formação nos arredores da ponte do Rio Barra Nova, à beira da estrada para o Itans, com muita poesia e sinceridade, foi lançado no último dia 14 de dezembro, e carrega em si talvez parte daquilo que compôs um dos maiores pesquisadores brasileiros da indústria de quadrinhos mundial.
 
Cena da história "Reco-Reco,
Bolão e Azeitona", de Luiz Sá,
recolorida digitalmente
A notícia do falecimento de Cirne vem poucos meses depois da perda de outra importante figura no mesmo campo de estudo acadêmico. Fundamental no reconhecimento do artista ítalo-brasileiro Ângelo Agostini como um dos precursores das histórias em quadrinhos enquanto meio de comunicação de massa, o professor Antonio Luiz Cagnin faleceu no dia 9 de outubro de 2013, vítima de um infarto fulminante durante uma reunião de colegas no Embu das Artes, em São Paulo. Nascido no bairro de Araras, Cagnin se apaixonou pela nona arte desde seu contato com a obra "Reco-Reco, Bolão e Azeitona", do desenhista cearense Luiz Sá, que participou da revista "O Tico-Tico" durante o período em que o conteúdo da revista que vinha do exterior sofria com atrasos e problemas de transporte decorrentes do período da Primeira Guerra Mundial. Cagnin, então, se empenhou no magistério, saindo de casa aos 15 anos para trabalhar no Instituto Tecnológico da Aeronáutica, localizado em São José dos Campos, e dando aulas de línguas no tempo sobressalente.
 
Antonio Luiz Cagnin
Durante seu período de pós-graduação na USP, a partir de 1972, Cagnin vivenciou com bastante gana o Congresso Internacional de Quadrinhos, realizado em São Paulo por artistas brasileiros, como o futuro estudioso Álvaro de Moya, fazendo contato com professores da França e da Itália acerca do estudo aprofundado da arte gráfica na narrativa de histórias, sendo posteriormente convidado para participar da Organização de Professores de Quadrinhos, organizada pelo professor Francisco Araújo, da faculdade de Brasília. Participante ativo nos congressos posteriores, realizados na Bordighera e Lucca, ambas em terras italianas, Cagnin viria a se tornar professor efetivo da USP apenas em 1984, no setor de semiologia na Escola de Comunicações e Artes.
 
Já tendo publicado em 1975 o livro "Os Quadrinhos", na série "Ensaios", da editora Ática, Cagnin encontrou na seção de obras raras da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro  "As Aventuras de Nhô Quim" e "As Aventuras do Zé Caipora", ambas produzidas pelo ítalo-brasileiro Ângelo Agostini e publicadas no jornal "Vida Fluminense", no ano de 1869. Observando mais atentamente o trabalho de Agostini, Cagnin se deu conta da aferição imprecisa do artista apenas como caricaturista, título que  lhe fora atribuído devido ao estudo feito pelo contista e historiador Herman de Castro Lima sobre o tema, durante a década de 1960. Cagnin explorou o restante do material produzido por Agostini e conseguiu realizar, em 1994, uma exposição sobre o artista nas instalações da USP na rua Maria Antonia, com apoio do consulado italiano. A repercussão da exposição foi enorme, percorrendo várias cidades brasileiras , além de muitos pontos ao redor da Europa, onde hoje é guardada no Centro de Estudos do Bordalo Pinheiro, em Portugal.
 
Cirne e Cagnin foram homens que dedicaram muito de suas vidas ao reconhecimento da arte dos quadrinhos e de seus representantes, valorizando a contribuição humana e cultural promovida por esse meio, e o material que eles nos permitiram ter acesso hoje, é certamente uma ferramenta de valor inestimável para uma visão ampla e acertada sobre o cenário brasileiro no campo da produção na nona arte. Suas palavras farão falta, mas seu empenho, dedicação e, acima disso, seus sonhos de validação da mídia, permanecerão vivos em cada um de nós em nossa jornada. 
 
Àqueles que tiverem interesse, a matéria sobre o falecimento do professor Moacy Cirne pode ser conferida no link aqui. Uma valiosa entrevista realizada com o professor Antônio Luiz Cagnin, realizada em 2010, também pode ser conferida no site "Bigorna 3.0", que pode ser acessado por aqui.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Nova Fragata pelos Quadrinhos Literários

Por Gabriel Guimarães



Uma das páginas do primeiro volume
de "História do Brasil em Quadrinhos"

Colaborador da revista "Mundo dos Super-Heróis" desde o mês de setembro de 2007, o jornalista Jota Silvestre tem se tornado presente em vários eventos de quadrinhos na cidade de São Paulo e em debates nas redes sociais sobre a nona arte e seus mais renomados personagens e autores. Com uma veia histórica acentuada, Jota logo começou a colaborar com trabalhos de propriedade educativa na arte sequencial, auxiliando a traduzir o argumento do escritor Edson Rossatto para a primeira história em quadrinhos produzida e publicada pela editora Europa, "História do Brasil em Quadrinhos", de pouco mais de 50 páginas e cujo público-alvo consistia em crianças com nível de escolaridade do Ensino Fundamental, majoritariamente.
 
 
Aydano Roriz, autor do romance
"O Fundador", que originou a HQ
publicada pela editora Europa
Com o sucesso alcançado por essa primeira publicação, o editor responsável, Manoel de Souza, levou adiante o planejamento de outros dois materiais de semelhantes características, um sendo uma continuação direta do material de Rossatto, e outra, uma adaptação mais madura sobre o romance histórico "O Fundador", escrito pelo historiador Aydano Roriz acerca da trajetória de vida do navegador português Tomé de Souza em seu tempo nas terras tupiniquins e seu papel na fundação da Bahia. Interessado pelo projeto e admirado pela fluidez do texto de Roriz, Jota assumiu as rédeas do trabalho, adaptando o conteúdo literário original em um roteiro coeso de quadrinhos de quase 75 páginas.
 
Ao longo de mais de três anos, ele e o desenhista JB Fernandes tiveram uma considerável carga de trabalho a fim de encontrar referências precisas sobre o período histórico em que a história se passa e o contexto no qual os personagens estavam inseridos, porém, o resultado valeu a pena. Com uma arte detalhada e uma preferência pelos diálogos enquanto ferramenta narrativa, a história captura o leitor, guiando-o confortavelmente pelos eventos históricos apresentados, servindo, dessa forma, como uma bela ferramenta de ensino para os interessados no tema.

O acabamento editorial aplicado pela editora Europa agregou, ainda, muito valor ao material, dispondo-o no mercado com acabamento de qualidade em papel couché a um preço acessível. A colorização da história, realizada pela dupla Marcio Menyz e Mauricio Leone, ambos professores representados pelo Instituto dos Quadrinhos, é igualmente elemento de destaque na obra, dando maior profundidade para os desenhos de Fernandes e implementando na história os tons e cores que a rica fauna e flora brasileiras apresentavam aos navegantes europeus.
 
Os prazos de produção da obra, porém, levaram a certas decisões editoriais que tiveram altos e baixos. Sem ter como dispor do tempo necessário para a arte-final das páginas a nanquim, o projeto foi inteiramente colorido sobre as ilustrações feitas a lápis por Fernandes e escaneadas para o computador. Isso acrescentou um tom marcante em determinadas cenas da história, tendo os traços indígenas dos personagens das tribos nativas do Brasil ganho uma naturalidade louvável, como a cena em que a filha de Diogo Álvares, Uyara, é apresentada ao seu futuro marido, entretanto, determinadas expressões faciais e marcas de sombra delineadas pelo traço acabaram perdendo certa qualidade que poderiam ter conservado em caso de um acabamento mais cuidadoso, ao exemplo da cena da união de Tomé de Souza com Jurecê e Yuruti, na casa de seu outrora criado, Garcia.
 
 
A história em quadrinhos, afinal, é de grande valia como ferramenta didática e até como instrumento de entretenimento. Obviamente, o período histórico em que tudo transcorre é rico demais em termos de detalhe para conseguir ser apresentado em suas minúcias para o leitor, porém, a adaptação de "O Fundador" para a nona arte é um material extremamente rico, tanto em texto quanto em arte, e merece uma chance para surpreender e cativar o público. A editora Europa certamente acertou ao desbravar esse nicho de mercado para as próximas gerações através das hábeis mãos de todos estes profissionais envolvidos no processo.

NOTA FINAL: 4,5 ESTRELAS.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Uma Valente Trilogia

Por Gabriel Guimarães


No último mês de dezembro, foram lançados pela editora Panini os três primeiros volumes das coletâneas de tirinhas do personagem "Valente", criado pelo mineiro Vitor Caffagi em setembro de 2010. Centrado nas desventuras amorosas de um jovem em meio ao seu período de amadurecimento e aprendizado sobre a vida, as tiras trazem em si muito da essência do trabalho do autor, que lida de forma delicada com as nuances emocionais dos personagens com que trabalha, algo facilmente discernível em seus outros projetos como as tiras "Puny Parker" (que já foram comentadas aqui no blog antes) e seu recente trabalho em parceria com sua talentosa irmã e habilidosa quadrinista Luciana Caffagi para os estúdios MSP.
 
Vitor Caffagi, autografando o mais
recente volume de sua coletânea de tiras
Tendo os dois primeiros volumes de "Valente" sido lançados anteriormente por meios independentes, a editora Panini chegou a um acordo com o autor para a republicação desses dois materiais prévios e os direitos para o lançamento do terceiro volume já com a logomarca da editora. Mantendo o formato horizontal original, a história conseguiu manter sua fluidez narrativa e ainda dispor de uma seção posterior às tiras com algumas artes feitas por desenhistas convidados.
 
O terceiro volume das coletâneas, "Valente por Opção", teve um primeiro contato com os leitores que estiveram presentes na Feira Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte, no segundo semestre do ano passado, mas apenas chegou às livrarias e pontos de venda ao redor do país no meio de dezembro. Dispondo de uma rede de distribuição à qual poucas editoras de revistas tem igual acesso dentro do Brasil, a Panini permite, assim, que o material de Vitor possa alcançar novos públicos que outrora não tinham conhecimento sobre ele. Isso se dá em momento extremamente oportuno, considerando sua recente popularidade advinda do seu trabalho na Graphic MSP "Turma da Mônica - Laços", que também já está confirmada para ter uma continuação a ser lançada entre 2014 e 2015.
 
Cena do primeiro volume das coletâneas, "Valente Para Sempre"
Boneco feito a partir
do personagem de Vitor,
ainda sem data para seu
lançamento oficial
A conquista do mercado de quadrinhos realizada por Vitor é um feito de grande valor para os autores nacionais e para os admiradores da arte sequencial como um todo. Com um início de carreira modesto, porém muita determinação, o quadrinista mineiro conseguiu espaço em uma indústria cujo foco se encontrava quase majoritariamente voltado para a produção de nona arte no exterior. Estando presente nos eventos de quadrinhos que ocorreram nos últimos anos e promovendo seu trabalho através das redes sociais e da publicação independente, Vitor tem sido um dos quadrinistas que têm quebrado as barreiras das limitações culturais que encontramos no Brasil e atraído merecida atenção para seu belo trabalho, promovendo em igual nível a divulgação de material inédito produzido dentro do próprio país.
 
Parte do selo editorial "Pandamônio", que também conta com a participação de sua irmã e dos quadrinistas Paulo Crumbim e Cristina Eiko, do site "Quadrinhos A2", do ilustrador Leonardo Finnochi e do escritor Liber Paz, entre muitos outros altamente talentosos quadrinistas, Vitor tem se tornado um rosto bastante presente no panorama dos quadrinhos atuais e tende a desempenhar ainda um papel de grande importância no cenário dos quadrinhos nacionais. Que sua valentia continue a lhe render o devido reconhecimento e possibilite ao mercado dispor de cada vez mais de sua tocante produção na arte sequencial. Para quem tiver interesse, o site onde ele posta suas tirinhas pode ser acessado no link aqui. A visita lá certamente proporcionará uma experiência altamente valorosa.