Por Gabriel Guimarães
Conforme pode ser
concluído a partir de textos como os do sociólogo Roy Wagner, a exemplo dos
presentes em sua obra “A Invenção da
Cultura”, a constituição do “ser” depende fundamentalmente da relação deste
com o contexto em que está inserido, ou seja, sem as determinadas
circunstâncias socioespaciais e comportamentais de que ele faz parte, seria
irrelevante a determinação de uma “identidade” deste, em si. Da mesma forma, se
dá a constituição de termos como “cultura” e “sociedade”, que dependem
invariavelmente de todos os fatores externos a eles para serem compreendidos
como aspectos determinantes no convívio social.
Wagner explora as
diferenças entre os povos analisados pelos antropólogos como sendo responsáveis
não apenas pela formulação de nossa compreensão sobre eles, mas também para a
reafirmação de nós mesmos e nossas tradições e costumes. Através da análise das
diferenças que tangem o habitat social nos diferentes cantos do planeta, é que
conseguimos chegar a uma compreensão mais abrangente sobre o nosso próprio
ambiente social.
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Para
o mundo em que vivemos hoje, onde a veiculação da informação quebrou barreiras
geográficas antes altamente limitantes do ponto de vista cultural, é
fundamental termos a compreensão das demais culturas que nos cercam, dando
ênfase ao fato de que, quanto mais culturas nós conhecemos, melhor somos
capazes de nos delinearmos com determinadas linhas de raciocínio, algo que
antes era apenas possível àqueles que viajavam longas distâncias, como os
personagens de quadrinhos europeus citados no parágrafo anterior.
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Na
Europa, entretanto, esse discurso do contato entre as identidades e culturas
diferentes já vinha de muito tempo antes do trabalho de Stan Lee nos Estados
Unidos. O belga Remy trabalhara desde o ano de 1929 em seu grande personagem, o
repórter “Tintin”, para abordar
assuntos interessantes e instigantes das demais culturas do mundo e, a partir
de 1969, ganhou outro grande parceiro nesse objetivo de uso para os quadrinhos,
o italiano Hugo Pratt, que vivera em constante mudança ao longo de sua vida por
conta de sua carreira naval e que havia se maravilhado com o universo fantástico
apresentado nas histórias de autores como Joseph Conrad e Herman Melville,
estando, então, determinado a passar para o papel suas experiências e devaneios
na figura de seu personagem “Corto
Maltês”.
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O cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo, junto do Conselho Representativo de Associações Negras (CRAN), da França, requisitou a proibição da venda do livro "Tintin no Congo", do belga Hergé |
Enquanto
Pratt levou seu navegador a cruzar o mundo inteiro, passando por países de
todos os continentes, experimentando das situações políticas mais variadas, e
testemunhando cenários dos mais diversos culturalmente possíveis, indo das
savanas africanas ao deserto árabe, passando pelos oceanos de posse internacional
e pelo matagal sul-americano; Hergé procurou detalhar ao máximo possível os
ambientes e tradições culturais que cercavam seu repórter, realizando ou pessoalmente
ou através da sua equipe de estúdio, pesquisas meticulosas acerca das culturas
mais longínquas que pudessem vir a ser abordadas. Neste quesito, infelizmente,
o belga acabou caindo em uma armadilha que o tempo e o desenvolvimento
sociocultural lhe pregaram. Em 1931, quando o Congo ainda era uma colônia de
exploração francesa, Hergé mandou seu personagem para lá em uma de suas
primeiras aventuras, adaptando todo o material que lhe era disponível na época
sobre o assunto. Anos mais tarde, o autor foi acusado de racismo e de ter
caracterizado tanto os habitantes quanto a cultura dos congoleses de forma
pejorativa. Na sua história biográfica, lançada em quadrinhos na Europa ano
passado, sob o título “The Adventures of
Hergé”, produzida pelo trio francês Jose-Louis Boucquet, Jean-Luc Fromental
e Stanislas Barthelemy, é mencionada a frustração com que o autor recebia esses
comentários acerca de sua obra. É necessário compreender a disponibilidade
corrente de informações que temos hoje e a que existia para ser utilizada pelo
criador de “Tintin” na sua época, o
que denota a datação de sua história em particular, não a tornando universal,
como alguns acreditam que esta seria, mas sim como um retrato histórico de como
a colônia era regida na época pelos seus colonizadores.
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A antropóloga Margareth Mead, durante sua etapa de pesquisa, na Samoa Americana |
Igualmente,
tal evento pode ocorrer no núcleo de observação dos antropólogos. Conforme pode
ser observado nas discussões acerca da veracidade de informações coletadas por
estes, é relevante lembrar o caso da americana Margareth Mead e seu estudo
acerca da vida sexual das garotas da região da Samoa americana, onde ela estabeleceu
moradia por bastante tempo e foi abastecida de informações pelas garotas jovens
da região, posteriormente rendendo-lhe conteúdo para seu estudo sobre as
diferenças de sexualidade e da forma como o ato sexual era socialmente visto no
ambiente público nas diferentes culturas (neste caso, entre a cultura de Samoa
e a norte-americana), se tornando uma referência quase absoluta no meio
antropológico por anos e virando símbolo da cultura hippie que crescia na época
de sua publicação, até que outros antropólogos, como Derek Freeman e Martin
Orans, fossem confirmar os dados reais do assunto, que não bateram com os que
Mead havia apresentado inicialmente. Essa disparidade não se deu por uma
distorção dos dados colhidos por Mead, mas sim por conta de informações erradas
que foram passadas à antropóloga durante sua pesquisa. O discurso desta, então,
tornou-se novamente assunto de discussão, levantando dúvidas acerca de sua
credibilidade, porém, sua importância em apresentar o papel da mulher no
cenário antropológico global e da sexualidade como elemento de repercussão e
diferenciação social se tornaram inegáveis. Igualmente, é possível observar o
discurso de Hergé, que fora abastecido das informações da época em que concebeu
seu trabalho, diferentes da percepção que temos hoje sobre a vida no Congo
africano. Por mais que o assunto não tenha sido trabalhado com a veracidade que
se acredita hoje, não é necessário negar toda a importância à que o autor da
obra está merecidamente atribuído.
Concluindo, o trabalho dos quadrinistas está intrinsecamente ligado à cultura da qual eles fazem parte e, por mais que possa haver casos do uso de estereótipos (que ainda ocorrem em demasia, infelizmente), tal qual existe a preocupação ética do antropólogo em produzir um trabalho digno e merecedor de credibilidade ´para todos os envolvidos no projeto, desde as sociedades estudadas à sociedade onde o estudo será veiculado, o mesmo ocorre com o mercado editorial de quadrinhos, que se preocupa em oferecer histórias de entretenimento e reflexão que respeitem a maior quantidade de leitores possível sem, entretanto, negar suas próprias origens culturais.
3 comentários:
Opa, Gabriel, o artigo tá bem legal, mas Hugo Pratt era italiano!!!
Obrigado pelo esclarecimento, Patati! Já está corrigido! =)
Bom texto! :)
|Penso que o discurso dos quadrinhos é um pouco o gosto de seu criador e outro tanto o senso publico do período social, rente aos leitores. Uma obra de sensibilidade artística, e como dita os dias de hoje, ao sabor da vericidade dos fatos que somos acostumados no dia-a-dia.|
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