Por Gabriel Guimarães
Conforme pode ser
concluído a partir de textos como os do sociólogo Roy Wagner, a exemplo dos
presentes em sua obra “A Invenção da
Cultura”, a constituição do “ser” depende fundamentalmente da relação deste
com o contexto em que está inserido, ou seja, sem as determinadas
circunstâncias socioespaciais e comportamentais de que ele faz parte, seria
irrelevante a determinação de uma “identidade” deste, em si. Da mesma forma, se
dá a constituição de termos como “cultura” e “sociedade”, que dependem
invariavelmente de todos os fatores externos a eles para serem compreendidos
como aspectos determinantes no convívio social.
Wagner explora as
diferenças entre os povos analisados pelos antropólogos como sendo responsáveis
não apenas pela formulação de nossa compreensão sobre eles, mas também para a
reafirmação de nós mesmos e nossas tradições e costumes. Através da análise das
diferenças que tangem o habitat social nos diferentes cantos do planeta, é que
conseguimos chegar a uma compreensão mais abrangente sobre o nosso próprio
ambiente social.
Muitos autores da narrativa em história em quadrinhos se tornaram
mundialmente conhecidos pelo papel analítico deste ponto de vista antropológico
sobre seus personagens. Seja nas histórias do marinheiro “Corto Maltês”, do italiano Hugo Pratt, nas intrépidas investigações
do repórter “Tintin”, do belga
Georges Remy (mais conhecido pelo seu pseudônimo, Hergé), nas observações do
contrato social a que estamos todos submetidos nas grandes metrópoles e o papel
deste na constituição das histórias e dramas dos seus habitantes, marca das
histórias do americano Will Eisner, ou mesmo na crítica da discriminação,
presente desde o começo das histórias dos “X-men”,
criados por Stan Lee e Jack Kirby na década de 1960, porém, cuja fase de maior
sucesso e que se focou neste ponto mais especificamente fora conduzido pelo
britânico Chris Claremont com desenhos de artistas variados, dentre os quais,
se destaca o talentoso John Byrne, cerca de vinte anos depois, o discurso dos
autores sempre procurou expor a crítica social com relação a questões vigentes
no período em que seus trabalhos estavam sendo publicados.
Para
o mundo em que vivemos hoje, onde a veiculação da informação quebrou barreiras
geográficas antes altamente limitantes do ponto de vista cultural, é
fundamental termos a compreensão das demais culturas que nos cercam, dando
ênfase ao fato de que, quanto mais culturas nós conhecemos, melhor somos
capazes de nos delinearmos com determinadas linhas de raciocínio, algo que
antes era apenas possível àqueles que viajavam longas distâncias, como os
personagens de quadrinhos europeus citados no parágrafo anterior.
Um
dos primeiros a trabalhar com a questão da diferenciação da identidade dentro
da sociedade e das formas como isso era absorvido culturalmente nos Estados
Unidos dentro dos quadrinhos, o roteirista Stan Lee, abordou questões que vão
muito além da superficialidade do universo dos quadrinhos de super-heróis.
Sendo posteriormente complementado e tido seu discurso atualizado por
Claremont, Lee demonstrou de forma metafórica os efeitos da discriminação
racial através de seus personagens mutantes mencionados anteriormente, que
carregavam dentro de seu DNA um fator a mais que não era de posse dos demais
habitantes do cenário social, sendo tratados, assim, de forma diferenciada e
menosprezada. Conforme o professor de comunicação social e editor Mário Feijó
destacou em seu livro “Quadrinhos em Ação
– Um Século de História”, e o sociólogo Nildo Vianna apontou em sua obra “Heróis e Super-heróis no Mundo dos
Quadrinhos”, Lee foi um dos autores que revolucionou o setor desse gênero
de quadrinhos ao trazer para dentro das histórias, as questões que estavam em
vigor na sociedade no momento em que estas eram consumidas, dentre as quais a
segregação racial era algo realmente determinante durante a década de 1960. Lee
trouxe esse debate para seus leitores em histórias que serviam para observar os
dois lados da questão, tanto dos discriminados quanto dos discriminantes, em
aspectos emblemáticos, como a comparação entre o líder de seus heróis, o “Professor Xavier” e o pastor Martin
Luther King, na luta por uma sociedade mais igualitária; e na comparação entre
o seu grande rival na história e antigo amigo, o vilão “Magneto” e o revolucionário Malcolm X, reflexo da revolta dos
discriminados que acabavam por cometer os mesmos erros de seus discriminantes,
trocando violência por mais violência e intolerância. Neste quesito, Vianna
destacou acertadamente que “o mundo dos super-heróis, como mundo do
extraordinário, é palco das manifestações dos valores de seus produtores (...)
e, ao mesmo tempo, do inconsciente coletivo”. Lee criou um grupo que se tornou
um marco para a luta social que acontecia, e trouxe o mundo real para as
páginas de quadrinhos mensais de uma forma que jamais deixaria de ser
trabalhada posteriormente ao seu período como profissional da editora Marvel.
Na
Europa, entretanto, esse discurso do contato entre as identidades e culturas
diferentes já vinha de muito tempo antes do trabalho de Stan Lee nos Estados
Unidos. O belga Remy trabalhara desde o ano de 1929 em seu grande personagem, o
repórter “Tintin”, para abordar
assuntos interessantes e instigantes das demais culturas do mundo e, a partir
de 1969, ganhou outro grande parceiro nesse objetivo de uso para os quadrinhos,
o italiano Hugo Pratt, que vivera em constante mudança ao longo de sua vida por
conta de sua carreira naval e que havia se maravilhado com o universo fantástico
apresentado nas histórias de autores como Joseph Conrad e Herman Melville,
estando, então, determinado a passar para o papel suas experiências e devaneios
na figura de seu personagem “Corto
Maltês”.
O cidadão congolês Bienvenu Mbutu Mondondo, junto do Conselho Representativo de Associações Negras (CRAN), da França, requisitou a proibição da venda do livro "Tintin no Congo", do belga Hergé |
Enquanto
Pratt levou seu navegador a cruzar o mundo inteiro, passando por países de
todos os continentes, experimentando das situações políticas mais variadas, e
testemunhando cenários dos mais diversos culturalmente possíveis, indo das
savanas africanas ao deserto árabe, passando pelos oceanos de posse internacional
e pelo matagal sul-americano; Hergé procurou detalhar ao máximo possível os
ambientes e tradições culturais que cercavam seu repórter, realizando ou pessoalmente
ou através da sua equipe de estúdio, pesquisas meticulosas acerca das culturas
mais longínquas que pudessem vir a ser abordadas. Neste quesito, infelizmente,
o belga acabou caindo em uma armadilha que o tempo e o desenvolvimento
sociocultural lhe pregaram. Em 1931, quando o Congo ainda era uma colônia de
exploração francesa, Hergé mandou seu personagem para lá em uma de suas
primeiras aventuras, adaptando todo o material que lhe era disponível na época
sobre o assunto. Anos mais tarde, o autor foi acusado de racismo e de ter
caracterizado tanto os habitantes quanto a cultura dos congoleses de forma
pejorativa. Na sua história biográfica, lançada em quadrinhos na Europa ano
passado, sob o título “The Adventures of
Hergé”, produzida pelo trio francês Jose-Louis Boucquet, Jean-Luc Fromental
e Stanislas Barthelemy, é mencionada a frustração com que o autor recebia esses
comentários acerca de sua obra. É necessário compreender a disponibilidade
corrente de informações que temos hoje e a que existia para ser utilizada pelo
criador de “Tintin” na sua época, o
que denota a datação de sua história em particular, não a tornando universal,
como alguns acreditam que esta seria, mas sim como um retrato histórico de como
a colônia era regida na época pelos seus colonizadores.
A antropóloga Margareth Mead, durante sua etapa de pesquisa, na Samoa Americana |
Igualmente,
tal evento pode ocorrer no núcleo de observação dos antropólogos. Conforme pode
ser observado nas discussões acerca da veracidade de informações coletadas por
estes, é relevante lembrar o caso da americana Margareth Mead e seu estudo
acerca da vida sexual das garotas da região da Samoa americana, onde ela estabeleceu
moradia por bastante tempo e foi abastecida de informações pelas garotas jovens
da região, posteriormente rendendo-lhe conteúdo para seu estudo sobre as
diferenças de sexualidade e da forma como o ato sexual era socialmente visto no
ambiente público nas diferentes culturas (neste caso, entre a cultura de Samoa
e a norte-americana), se tornando uma referência quase absoluta no meio
antropológico por anos e virando símbolo da cultura hippie que crescia na época
de sua publicação, até que outros antropólogos, como Derek Freeman e Martin
Orans, fossem confirmar os dados reais do assunto, que não bateram com os que
Mead havia apresentado inicialmente. Essa disparidade não se deu por uma
distorção dos dados colhidos por Mead, mas sim por conta de informações erradas
que foram passadas à antropóloga durante sua pesquisa. O discurso desta, então,
tornou-se novamente assunto de discussão, levantando dúvidas acerca de sua
credibilidade, porém, sua importância em apresentar o papel da mulher no
cenário antropológico global e da sexualidade como elemento de repercussão e
diferenciação social se tornaram inegáveis. Igualmente, é possível observar o
discurso de Hergé, que fora abastecido das informações da época em que concebeu
seu trabalho, diferentes da percepção que temos hoje sobre a vida no Congo
africano. Por mais que o assunto não tenha sido trabalhado com a veracidade que
se acredita hoje, não é necessário negar toda a importância à que o autor da
obra está merecidamente atribuído.
Concluindo, o trabalho dos quadrinistas está intrinsecamente ligado à cultura da qual eles fazem parte e, por mais que possa haver casos do uso de estereótipos (que ainda ocorrem em demasia, infelizmente), tal qual existe a preocupação ética do antropólogo em produzir um trabalho digno e merecedor de credibilidade ´para todos os envolvidos no projeto, desde as sociedades estudadas à sociedade onde o estudo será veiculado, o mesmo ocorre com o mercado editorial de quadrinhos, que se preocupa em oferecer histórias de entretenimento e reflexão que respeitem a maior quantidade de leitores possível sem, entretanto, negar suas próprias origens culturais.
3 comentários:
Opa, Gabriel, o artigo tá bem legal, mas Hugo Pratt era italiano!!!
Obrigado pelo esclarecimento, Patati! Já está corrigido! =)
Bom texto! :)
|Penso que o discurso dos quadrinhos é um pouco o gosto de seu criador e outro tanto o senso publico do período social, rente aos leitores. Uma obra de sensibilidade artística, e como dita os dias de hoje, ao sabor da vericidade dos fatos que somos acostumados no dia-a-dia.|
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