quinta-feira, 4 de outubro de 2012

As Similaridades Entre o Estudo Antropológico e o Discurso Quadrinístico

Por Gabriel Guimarães

Conforme pode ser concluído a partir de textos como os do sociólogo Roy Wagner, a exemplo dos presentes em sua obra “A Invenção da Cultura”, a constituição do “ser” depende fundamentalmente da relação deste com o contexto em que está inserido, ou seja, sem as determinadas circunstâncias socioespaciais e comportamentais de que ele faz parte, seria irrelevante a determinação de uma “identidade” deste, em si. Da mesma forma, se dá a constituição de termos como “cultura” e “sociedade”, que dependem invariavelmente de todos os fatores externos a eles para serem compreendidos como aspectos determinantes no convívio social.

Wagner explora as diferenças entre os povos analisados pelos antropólogos como sendo responsáveis não apenas pela formulação de nossa compreensão sobre eles, mas também para a reafirmação de nós mesmos e nossas tradições e costumes. Através da análise das diferenças que tangem o habitat social nos diferentes cantos do planeta, é que conseguimos chegar a uma compreensão mais abrangente sobre o nosso próprio ambiente social.

Muitos autores da narrativa em história em quadrinhos se tornaram mundialmente conhecidos pelo papel analítico deste ponto de vista antropológico sobre seus personagens. Seja nas histórias do marinheiro “Corto Maltês”, do italiano Hugo Pratt, nas intrépidas investigações do repórter “Tintin”, do belga Georges Remy (mais conhecido pelo seu pseudônimo, Hergé), nas observações do contrato social a que estamos todos submetidos nas grandes metrópoles e o papel deste na constituição das histórias e dramas dos seus habitantes, marca das histórias do americano Will Eisner, ou mesmo na crítica da discriminação, presente desde o começo das histórias dos “X-men”, criados por Stan Lee e Jack Kirby na década de 1960, porém, cuja fase de maior sucesso e que se focou neste ponto mais especificamente fora conduzido pelo britânico Chris Claremont com desenhos de artistas variados, dentre os quais, se destaca o talentoso John Byrne, cerca de vinte anos depois, o discurso dos autores sempre procurou expor a crítica social com relação a questões vigentes no período em que seus trabalhos estavam sendo publicados.

Para o mundo em que vivemos hoje, onde a veiculação da informação quebrou barreiras geográficas antes altamente limitantes do ponto de vista cultural, é fundamental termos a compreensão das demais culturas que nos cercam, dando ênfase ao fato de que, quanto mais culturas nós conhecemos, melhor somos capazes de nos delinearmos com determinadas linhas de raciocínio, algo que antes era apenas possível àqueles que viajavam longas distâncias, como os personagens de quadrinhos europeus citados no parágrafo anterior.

Um dos primeiros a trabalhar com a questão da diferenciação da identidade dentro da sociedade e das formas como isso era absorvido culturalmente nos Estados Unidos dentro dos quadrinhos, o roteirista Stan Lee, abordou questões que vão muito além da superficialidade do universo dos quadrinhos de super-heróis. Sendo posteriormente complementado e tido seu discurso atualizado por Claremont, Lee demonstrou de forma metafórica os efeitos da discriminação racial através de seus personagens mutantes mencionados anteriormente, que carregavam dentro de seu DNA um fator a mais que não era de posse dos demais habitantes do cenário social, sendo tratados, assim, de forma diferenciada e menosprezada. Conforme o professor de comunicação social e editor Mário Feijó destacou em seu livro “Quadrinhos em Ação – Um Século de História”, e o sociólogo Nildo Vianna apontou em sua obra “Heróis e Super-heróis no Mundo dos Quadrinhos”, Lee foi um dos autores que revolucionou o setor desse gênero de quadrinhos ao trazer para dentro das histórias, as questões que estavam em vigor na sociedade no momento em que estas eram consumidas, dentre as quais a segregação racial era algo realmente determinante durante a década de 1960. Lee trouxe esse debate para seus leitores em histórias que serviam para observar os dois lados da questão, tanto dos discriminados quanto dos discriminantes, em aspectos emblemáticos, como a comparação entre o líder de seus heróis, o “Professor Xavier” e o pastor Martin Luther King, na luta por uma sociedade mais igualitária; e na comparação entre o seu grande rival na história e antigo amigo, o vilão “Magneto” e o revolucionário Malcolm X, reflexo da revolta dos discriminados que acabavam por cometer os mesmos erros de seus discriminantes, trocando violência por mais violência e intolerância. Neste quesito, Vianna destacou acertadamente que “o mundo dos super-heróis, como mundo do extraordinário, é palco das manifestações dos valores de seus produtores (...) e, ao mesmo tempo, do inconsciente coletivo”. Lee criou um grupo que se tornou um marco para a luta social que acontecia, e trouxe o mundo real para as páginas de quadrinhos mensais de uma forma que jamais deixaria de ser trabalhada posteriormente ao seu período como profissional da editora Marvel.

Na Europa, entretanto, esse discurso do contato entre as identidades e culturas diferentes já vinha de muito tempo antes do trabalho de Stan Lee nos Estados Unidos. O belga Remy trabalhara desde o ano de 1929 em seu grande personagem, o repórter “Tintin”, para abordar assuntos interessantes e instigantes das demais culturas do mundo e, a partir de 1969, ganhou outro grande parceiro nesse objetivo de uso para os quadrinhos, o italiano Hugo Pratt, que vivera em constante mudança ao longo de sua vida por conta de sua carreira naval e que havia se maravilhado com o universo fantástico apresentado nas histórias de autores como Joseph Conrad e Herman Melville, estando, então, determinado a passar para o papel suas experiências e devaneios na figura de seu personagem “Corto Maltês”.

O cidadão congolês  Bienvenu Mbutu Mondondo, junto do
Conselho Representativo de Associações Negras (CRAN),
da França,  requisitou a proibição da venda do livro "Tintin
no Congo", do belga Hergé
 
Enquanto Pratt levou seu navegador a cruzar o mundo inteiro, passando por países de todos os continentes, experimentando das situações políticas mais variadas, e testemunhando cenários dos mais diversos culturalmente possíveis, indo das savanas africanas ao deserto árabe, passando pelos oceanos de posse internacional e pelo matagal sul-americano; Hergé procurou detalhar ao máximo possível os ambientes e tradições culturais que cercavam seu repórter, realizando ou pessoalmente ou através da sua equipe de estúdio, pesquisas meticulosas acerca das culturas mais longínquas que pudessem vir a ser abordadas. Neste quesito, infelizmente, o belga acabou caindo em uma armadilha que o tempo e o desenvolvimento sociocultural lhe pregaram. Em 1931, quando o Congo ainda era uma colônia de exploração francesa, Hergé mandou seu personagem para lá em uma de suas primeiras aventuras, adaptando todo o material que lhe era disponível na época sobre o assunto. Anos mais tarde, o autor foi acusado de racismo e de ter caracterizado tanto os habitantes quanto a cultura dos congoleses de forma pejorativa. Na sua história biográfica, lançada em quadrinhos na Europa ano passado, sob o título “The Adventures of Hergé”, produzida pelo trio francês Jose-Louis Boucquet, Jean-Luc Fromental e Stanislas Barthelemy, é mencionada a frustração com que o autor recebia esses comentários acerca de sua obra. É necessário compreender a disponibilidade corrente de informações que temos hoje e a que existia para ser utilizada pelo criador de “Tintin” na sua época, o que denota a datação de sua história em particular, não a tornando universal, como alguns acreditam que esta seria, mas sim como um retrato histórico de como a colônia era regida na época pelos seus colonizadores.

A antropóloga Margareth Mead, durante sua
etapa de pesquisa, na Samoa Americana
Igualmente, tal evento pode ocorrer no núcleo de observação dos antropólogos. Conforme pode ser observado nas discussões acerca da veracidade de informações coletadas por estes, é relevante lembrar o caso da americana Margareth Mead e seu estudo acerca da vida sexual das garotas da região da Samoa americana, onde ela estabeleceu moradia por bastante tempo e foi abastecida de informações pelas garotas jovens da região, posteriormente rendendo-lhe conteúdo para seu estudo sobre as diferenças de sexualidade e da forma como o ato sexual era socialmente visto no ambiente público nas diferentes culturas (neste caso, entre a cultura de Samoa e a norte-americana), se tornando uma referência quase absoluta no meio antropológico por anos e virando símbolo da cultura hippie que crescia na época de sua publicação, até que outros antropólogos, como Derek Freeman e Martin Orans, fossem confirmar os dados reais do assunto, que não bateram com os que Mead havia apresentado inicialmente. Essa disparidade não se deu por uma distorção dos dados colhidos por Mead, mas sim por conta de informações erradas que foram passadas à antropóloga durante sua pesquisa. O discurso desta, então, tornou-se novamente assunto de discussão, levantando dúvidas acerca de sua credibilidade, porém, sua importância em apresentar o papel da mulher no cenário antropológico global e da sexualidade como elemento de repercussão e diferenciação social se tornaram inegáveis. Igualmente, é possível observar o discurso de Hergé, que fora abastecido das informações da época em que concebeu seu trabalho, diferentes da percepção que temos hoje sobre a vida no Congo africano. Por mais que o assunto não tenha sido trabalhado com a veracidade que se acredita hoje, não é necessário negar toda a importância à que o autor da obra está merecidamente atribuído.
 
Concluindo, o trabalho dos quadrinistas está intrinsecamente ligado à cultura da qual eles fazem parte e, por mais que possa haver casos do uso de estereótipos (que ainda ocorrem em demasia, infelizmente), tal qual existe a preocupação ética do antropólogo em produzir um trabalho digno e merecedor de credibilidade ´para todos os envolvidos no projeto, desde as sociedades estudadas à sociedade onde o estudo será veiculado, o mesmo ocorre com o mercado editorial de quadrinhos, que se preocupa em oferecer histórias de entretenimento e reflexão que respeitem a maior quantidade de leitores possível sem, entretanto, negar suas próprias origens culturais.

3 comentários:

patati disse...

Opa, Gabriel, o artigo tá bem legal, mas Hugo Pratt era italiano!!!

GG disse...

Obrigado pelo esclarecimento, Patati! Já está corrigido! =)

Anônimo disse...

Bom texto! :)

|Penso que o discurso dos quadrinhos é um pouco o gosto de seu criador e outro tanto o senso publico do período social, rente aos leitores. Uma obra de sensibilidade artística, e como dita os dias de hoje, ao sabor da vericidade dos fatos que somos acostumados no dia-a-dia.|