quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Imersão, Cognição e o Novo Papel dos "Fãs"

Por Gabriel Guimarães

Em 2006, o comunicólogo Henry Jenkins III apontou em seu livro “Cultura da Covergência” as principais mudanças que estavam sendo causadas naquele momento pelas ascendentes redes sociais e demais canais de comunicação online. Com uma apresentação abrangente e capítulos focados em assuntos específicos,o livro se tornou uma referência para o estudo do efeito das tecnologias no relacionamento entre as marcas e seus consumidores, porém, passados alguns anos de seus estudos, muitos avanços ocorreram, e a sociedade passou por uma transição ainda corrente, que levará algumas das ponderações de Jenkins ainda mais além do que ele previra. O capítulo “Guerra nas Estrelas por Quentin Tarantino?” é um grande exemplo desse evento.


Com o avanço dos dispositivos tecnológicos e a nova lógica de interação social, a forma como se dava a transferência de conteúdo sofreu mudanças determinantes, e todos os envolvidos no processo, independente de poder de representação, passaram a ser peças ativas, com capacidade de se posicionar e alterar de alguma forma o processo clássico de comunicação. Jenkins inicia seu capítulo por definir a diferença entre a interatividade e a participação dos consumidores midiáticos frente a essa nova realidade, uma vez que os “fãs”, grupo de espectadores e/ou leitores mais ativo do setor de entretenimento que não se satisfazem com apenas aquilo que lhes é dado pela indústria de forma oficial, foram os primeiros a dominarem o dispositivo eletrônico enquanto divulgador de opiniões.

Enquanto a interatividade encontra limitações na barreira tecnológica, pois depende dos recursos que um determinado programa permita utilizar, a participação é plena e livre. A interatividade surgiu para tentar controlar e receber o feedback do público da comunicação veiculada na mainstream, enquanto a participação diz respeito ao poder desse público de interagir com esse mesmo conteúdo comunicativo. Para exemplificar essa diferença, Jenkins comenta de vários vídeos produzidos pelos fãs do universo de Star Wars que obtiveram grande sucesso. Fora das criações de George Lucas, porém, há também casos muito conhecidos dessa participação ativa dos fãs, através principalmente das fan fictions, ficção original feita pelos fãs a partir de um produto midiático previamente estabelecido. Sites como o incrivelmente amplo fanfiction.net e o blog Ultimate DC são alguns exemplos disso.

Algumas empresas ligadas ao mainstream, entretanto, com essa mudança, passaram a se preocupar com uma possível perda de domínio sobre o conteúdo criado por fãs em cima de suas principais fontes de renda, o que levou a indústria como um todo a uma divisão no que se refere ao seu posicionamento com essa participação do consumidor: enquanto umas viram nesse elemento uma forma de divulgação sem custos financeiros e que ganha mais força de credibilidade junto aos fãs, sendo portanto denominadas cooperativistas; outras optaram por um protecionismo exacerbado, protegendo seu conteúdo de quaisquer violações de direitos de domínio, sendo chamadas, dessa forma, de proibicionistas.

Desse ponto, Jenkins traça um histórico da cultura enquanto comércio no cenário norte-americano ao longo do século XX, quando ocorreu uma transição do mercado popular para o mercado de massa. Com isso, muitas das criações que antigamente eram expostas nas grandes praças em tom de balada, poesia ou de teatros amadores, passaram a ocupar um cenário mais escondido, o underground, para que, dessa forma, as grandes marcas e empresas pudessem ocupar todo o cenário de maior destaque da mídia com suas criações produzidas para uma quantidade cada vez mais numerosa e amorfa de consumidores.

Nesse contexto, muitos admiradores do material mais conhecido pelo público passaram a guardar para si o conteúdo de fã que eles produziam por conta própria, como uma referência ou homenagem àquele universo ao qual eles dedicam tanta atenção, ao invés de divulgá-lo aos demais, como seria feito em tempos passados. Isso tudo mudou com o advento da internet, que permitiu, enfim, uma interação viva e muito ativa desses fãs produtores com os demais fãs, gerando dessa forma alguns casos aclamados desse conteúdo, como são o caso de web séries como a brasileira “CSI: Nova Iguaçú” e a americana “Mortal Kombat: Legacy”, esta última, apesar de ser feita de forma oficial, incentivada pela própria Warner Brothers, que detinha os direitos de imagem do game de sucesso, começou com um curta não-oficial produzido com os recursos do próprio diretor, Kevin Tancharoen.

Apesar das preocupações com os limites de uso do conteúdo midiático da mainstream, que levou o professor da faculdade de direito de Stanford e escritor Lawrence Lessig a fundar uma empresa de gerenciamento de marca voltada para a defesa do criador do conteúdo em equilíbrio com os direitos de consumo daquele conteúdo pelo público, a Creative Commons, em 2001. Com uma tabela detalhada em diferentes planos de proteção, mediante a liberdade que seria pretendida dar aos consumidores pelo autor, o sistema conseguiu muitos adeptos,como o quadrinista brasileiro Cadu Simões, e hoje parece ser a melhor forma de gestão dos direitos autorais com o advento dos aparelhos eletrônicos.

Deste ponto, Jenkins passa a concentrar seu estudo na condição do autor enquanto amador, utilizando desse conteúdo previamente conhecido na indústria como forma de divulgar seu próprio estilo e capacidade de trabalhar. Destacando o filme amador como porta de entrada para grandes diretores do cinema, como Steven Spielberg e o próprio George Lucas, ele aponta como essa nova forma de interação com esses elementos do imaginário popular coletivo dos tempos atuais geraram potencial para o surgimento de novos nomes da indústria do cinema. A web se tornou, dessa forma, um local para explorar o potencial criativo dessas pessoas e, assim, forneceu material bastante interessante a quem o procurasse, como, por exemplo, a web série "Lado Nix", que possui dezenas de referências a elementos da cultura pop comum a uma grande margem do público de mainstream, porém trata de personagens originais e tem divulgação ligada a veículos de comunicação menos massificados.

Jenkins ainda comenta o surgimento de competições de filmes amadores feitos com câmeras de menor resolução como a Pixelvision, quase uma marca registrada da mídia alternativa pelas limitações de sua produção e a similaridade da imagem amadora da sua produção a vídeos caseiros. A partir desse interesse em promover os projetos pessoais de aspirantes a diretores cujos recursos disponíveis à mão são os dos amadores, surgiu também a proposta do grupo Machinima, que tem como objetivo incentivar a produção de conteúdo amador ligado a games. Atualmente, essa produção com meios amadores tem recebido muitos incentivos, como, por exemplo,concursos culturais e festivais de filmes produzidos apenas com a câmera de celulares. Outras produções, como a Dorkly Bits, seguem já na proposta de usar os games como forma de gerar conteúdo inédito, mas com material presente na cultura popular do público.

Ao observar esse crescente interesse do mercado em expandir seu material original, o diretor George Lucas procurou uma forma de permitir ao público se tornar parte do universo de personagens que admiram tanto, com algumas limitações para que não houvesse uma perda de valores da versão oficial. Inicialmente feita de forma mais livre, a partir de 1981, porém, a empresa do criador de Star Wars, a LucasArts, passou a ter que notificar alguns dos escritores de fanfic que levavam o conteúdo da série para o ramo da pornografia, o que violava o caráter que os personagens deveriam manter. Com isso, a política de tolerância de Lucas caiu muito, e alguns fãs mais revoltados alegaram que ele estava se comportando como um “Wookie” de 200 quilos que andava mal humorado e soltava alguns resmungos eventualmente. O grande problema foi a extremidade de cada uma dessas posturas, ao invés da procura por um meio termo na política de produção dos fãs.

Em contrapartida à postura de controle praticada em grande parte dos Estados Unidos, Jenkins destaca o caso da divulgação de animações e quadrinhos japoneses feita pelos fãs desse material dentro das faculdades norte-americanas. Incentivada pelos distribuidores, que tinham seus custos de exportação reduzidos através dos serviços prestados gratuitamente pelos fãs, como a criação de legendas e a promoção do material, o clamor pelo material de entretenimento japonês floresceu em uma grande estratégia de valorização de marca. Enquanto muitas empresas dos Estados Unidos veriam como atitudes invasivas aos seus direitos patrimoniais sobre aquele conteúdo midiático, as empresas japonesas viram como forma de ampliar seu mercado, gerando um aumento acelerado da procura pelo material relacionado àquele conteúdo e levando os revendedores das tradicionais comic shops americanas a correr atrás da demanda do público.

A partir deste ponto, Jenkins entra em outro dos principais tópicos do capítulo, a questão da participação plena do fã no universo de conteúdo que tanto admira, ou seja, a imersão. Iniciada de forma ainda precária, com os jogos de RPG de tabuleiro, onde cada jogador criava um personagem com características de acordo com sua preferência para integrar o universo ficcional em que o jogo toma parte, a questão da imersão dentro da fantasia sempre foi algo bastante discutido.

Uma vez que as tecnologias trazem consigo mudanças para a interação social habitual, não é nenhuma surpresa que algo semelhante ocorrera em relação aos jogos de rolagem de dados (Role Playing Games). Com a popularização da internet, foram surgindo novas tentativas de gerar uma participação em um jogo eletrônico de aventura que simulasse o máximo possível a emoção e dedicação que o jogo físico trazia, e dessa forma, surgiram os primeiros modelos de MMORPGS, ou seja, RPG para múltiplos jogadores online. Conforme destacou Raph Hoster, desenvolvedor do game Star Wars Galaxies, para os jogadores, não se trata de apenas um jogo, trata-se, da fato, de um mundo inteiramente novo, de uma comunidade altamente participativa. Com isso em mente, muitos desenvolvedores passaram a se empenhar na transmissão do sentimento de posse para os jogadores sobre aquele conteúdo com o qual interagiam. Não mais bastava realizar as regras fixas do jogo, agora, o que todos queriam era fazerem as próprias regras para seus próprios jogos, se fundindo, dessa forma, de vez ao universo em que o jogo é ambientado.

Essa tamanha gama de possibilidades entregue às mãos dos fãs foi algo que uma vez realizado, não havia mais como voltar atrás, e mediante a incerteza dos resultados que isso daria, o jogo se tornou, de certa forma, um universo em si mesmo, com a variabilidade de escolhas que caracterizam a vida real, ainda que transmitida de forma um tanto parcial, mediante os parâmetros do jogo. O jogo se tornou tão real, que virou a realidade de alguns jogadores, e a renda que estes obtinham em seus empregos fora do virtual passou a ser gasta com bens produzidos especificamente para a ficção da qual tomavam parte. Essa é a questão que Jenkins aborda ao analisar os shoppings do jogo The Sims, onde o conteúdo é gerado pelos próprios usuários e consumido pelos próprios usuários, praticamente sem qualquer intervenção por parte dos desenvolvedores do jogo. Algo semelhante pode ser observado no recente jogo de MMORPG que foi lançado pela editora de quadrinhos DC comics em parceria com o setor de games da Warner e da Sony, o DC Universe Online. Lançado no meio de 2011, foi apenas em novembro que o jogo passou a ser liberado de graça para quem tivesse interesse de baixá-lo em seus consoles de Playstation 3 (de propriedade da Sony) ou em seus computadores. Ao ser lançado de forma paga inicialmente, o jogo atraiu os fãs mais ávidos e ansiosos, que compraram o jogo e gastaram uma quantidade considerável de dinheiro com ele, para, então, liberar para que todos os demais pudessem participar e ter um gosto inicial, quase uma prova da liberdade incrível que o jogo disponibiliza. Apesar de essa estratégia parecer um tanto confusa, ela já foi posta em prática por outros games de MMORPG antes, e consiste no oferecimento de pacotes personalizados para o interesse particular de cada consumidor. Enquanto há o pacote grátis, que provocou, inclusive, um aumento de 3 mil usuários para 280 mil usuários em pouco mais de um mês, há outros dois pacotes de uso do jogo que podem ser adquiridos a qualquer momento pelo usuário, basta que ele assim o requisite. O primeiro custa cerca de 7 dólares mensais, e dá alguns benefícios extras, mais espaço no inventário de itens que o personagem carrega consigo e mais capacidade de armazenar o dinheiro do jogo, utilizado para comprar itens especiais. O outro pacote, ao preço de 15 dólares por mês, já dá liberdade total, com uma capacidade infinita de armazenamento de dinheiro virtual, um inventário vasto para qualquer desejo do usuário, e a capacidade de formar sua própria liga de heróis com outros usuários a que tenha afinidade. Tudo depende apenas do desejo do consumidor, e mesmo quem não tem hábito de gastar dinheiro nos jogos eletrônicos, acaba se vendo interessado em adquirir alguns desses benefícios, para, dessa forma, crescer enquanto personagem do jogo.

Apesar do empreendedorismo de Hoster, porém, os resultados de venda do jogo Star Wars Galaxies não foi exatamente o esperado, principalmente em virtude da concorrência quase imbatível do recém lançado World of Warcraft. Os números finais do game da LucasArts, apesar de enganosos, acabaram por levar a diretora-sênior Nancy MacIntyre a alegar que os fãs não queriam ter o trabalho de criar nada, mas apenas se sentirem na pele dos personagens já consagrados na série de cinema. Essa afirmação causou grandes represálias por parte dos fãs, que se sentirem desrespeitados em seus direitos com aquele conteúdo, como se estivessem numa posição de submissão aos desígnios da empresa produtora dos games.

É neste ponto que termina o capítulo “Guerra nas Estrelas por Quentin Tarantino?”, de Henry Jenkins, porém, vale destacar alguns desdobramentos que são percebidos atualmente com relação à participação do fã na geração de conteúdo midiático relacionado a universos ficcionais previamente estabelecidos. A própria LucasArts parece ter percebido o quão infeliz fora a afirmação de MacIntyre, e está prestes a lançar o game Star Wars Old Republic, onde o quase infinito número de possibilidades de escolha permite ao usuário se tornar verdadeiramente parte daquele material. Ao mesmo tempo, vendo o sucesso de sua grande concorrente no setor de histórias em quadrinhos de heróis com o jogo DC Universe Online, a editora Marvel também está prestes a lançar uma versão sua no setor de MMORPG, e isso com certeza atrairá muito o público que lia as revistas dessa grande casa de idéias e também sempre sonhou em fazer parte de todo esse universo mirabolante. Entretanto, hoje, mesmo em outras formas de jogo, é possível perceber o quanto a questão da personalização, customização, vem se tornando um elemento diferenciador e um atrativo quase que fundamental. Basta que se observe os jogos eletrônicos de futebol, onde o usuário pode criar seu próprio jogador e montar uma carreira com ele, mudando de times, chegando ao ponto de ser convocado para a seleção do país ao qual atribuiu seu jogador. A imersão hoje é um pré-requisito para o interesse do público, e seu grau de profundidade é algo que ainda merece estudos mais detalhados para o futuro.

2 comentários:

* Andhora Silveira * disse...

Belo trabalho acadêmico! Dá pra sentir pelas palavras que você é bastante entendido do assunto.

É interessante analisar sob essa perspectiva os quadrinhos e games atuais e o papel da tecnologia nisso tudo.

Aguardando ansiosa a próxima postagem :)

Nano disse...

Muito bom!