sábado, 18 de dezembro de 2010

A Miscelânia de Culturas e o Contato entre as Identidades nas Obras do Corto Maltese

Por Gabriel Guimarães

Histórias em Quadrinhos como agregador cultural:


Desde seus primórdios como meio de comunicação de massa, as histórias em quadrinhos demonstraram ser um ambiente onde o contato entre as diferentes culturas é abordado de forma essencial. Na história em quadrinhos que é até hoje considerada oficialmente como a primeira com a finalidade de atingir os grandes públicos, “Down Hogan’s Alley”, publicada no jornal New York World, narrava a história de um garoto de origem asiática (posteriormente chamado de Yellow Kid) que mora nos bairros mais pobres de Nova York, dando destaque à enorme quantidade de culturas da qual a cultura norte-americana se constituiu no começo do século XX.

Seu autor, Richard Outcault, também foi o responsável por introduzir o balão de fala nas histórias e pelo cunho dado ao jornalismo de imprensa amarela, advindo da sua transferência junto de seu personagem mais conhecido do jornal onde fora lançado para um outro concorrente, sendo que ambos permaneceram produzindo conteúdo, com autores diferentes para um mesmo elenco de personagens, o que levou alguns críticos da época a atacar os jornais de só quererem vender jornal e não de entreter de forma responsável o público. Apesar disso tudo, a alta popularidade da história inventada por Outcault demonstrava que o povo americano era de fato uma mistura de diversas culturas, provenientes de vários lugares do mundo, e que se sentiam relacionados de alguma forma àquelas narrativas inter-étnicas e inter-culturais.

Conforme o tempo passou, as histórias em quadrinhos foram se dividindo em diversos gêneros com seus públicos-alvo se ramificando em nichos, ainda que muito superficialmente no começo, entretanto, sempre era possível perceber que as diferenças cultuais eram um tema tratado com uma delicadeza particular. Os alemães e chineses nos quadrinhos da Marvel, DC e Fawcett comics durante a Segunda Guerra Mundial e por um considerável período de tempo depois; os muitos países visitados pelo personagem Tintin, do belga Hergé, que mostravam muitas vezes apenas uma caricatura do que alguém de fora vê ao invés de uma versão inteiramente realista dos habitantes daqueles lugares; o vilão de aparência asiática nos quadrinhos de Flash Gordon, do talentoso artista Alex Raymond; entre muitos outros.

O continente africano, então, é um grande exemplo disso. Apresentado inicialmente pelo personagem Tarzan e depois pelo igualmente heróico Fantasma, os cenários eram sempre retratados de uma forma misteriosa, como uma terra abundante de seres diferentes dos de qualquer outra região do globo e cujo povo andava sempre junto, em tribos fechadas com seus rituais característicos. Nos quadrinhos de Tintin, a diferença entre a civilização européia e a africana, já por outro lado, marcou algo que foi muito debatido nos centros de discussão da nona arte: sobre o predomínio cultural entre os países e as influências nessa percepção do período colonialista em que os países africanos passaram sob controle de uma cultura diferente da deles.

Destoando da forma espetacularizada com que era tratada a África, eis que na década de 1970 surge um personagem que a olhou nos seus olhos mais reais, como uma cultura diferente que merece ser igualmente respeitada. Corto Maltese desembarcou nos cenários selvagens para mostrar que há mais do que simplesmente mistério naquele continente, há histórias e experiências de vida únicas que merecem ser conhecidas. E tudo isso com certeza veio da influência que seu talentoso autor Hugo Pratt sofreu de suas viagens ao redor do mundo, o que lhe pôs em contato com as mais diversas culturas e etnias, expandindo sua visão de mundo e de vida.

Base cultural do autor Hugo Pratt:

Nascido num pequeno povoado próximo à cidade de Rimini, na Itália, Hugo Pratt não passou muito tempo fixo em um local só, o que lhe permitiu expandir de forma incrível seu entendimento de termos como cultura e comunicação. Logo aos dez anos, se mudou com sua família para a Etiópia, ainda chamada na época de Abissínia, quando seu pai teve a oportunidade de se tornar chefe de estaleiro de uma estrada em construção que ia de Assab a Dessié. Para Pratt, a experiência de deixar Veneza, onde já estava morando com sua mãe, para ir para a África foi, nas suas próprias palavras, “uma grande aventura”, e suas recordações da viagem de barco permaneceram vivas em sua mente pelo resto de sua vida.

Passando a morar na Etiópia, Pratt se viu completamente maravilhado com os cenários que via pela frente, preenchendo vários cadernos com desenhos do que via, uma vez que não possuía uma máquina fotográfica para gravar as imagens de forma definitiva. Sua memória gráfica se revelou uma das principais ferramentas que usou na sua carreira de artista, reproduzindo em várias obras ao longo de sua vida cenas específicas que testemunhou nesse período de tempo, como a relação dos ingleses, escoceses e demais europeus com o povo africano. Somente com dezesseis anos é que Pratt retorna à Itália, mas sem jamais ter esquecido a vida peculiar que levou no continente africano.

Passando por um período meio tenso na Itália de Mussolini, que era envolvido com a Alemanha nazista, ele se alista a contra-gosto no exército que dava apoio ao alemão, porém, consegue fugir após três semanas de serviço. Aos vinte anos, dava suas escapadas de Veneza, viajando bastante. Em 1947, visita uma outra série de países, dentre os quais Áustria, Inglaterra e França, até que, em 1949, um editor também italiano instalado em Buenos Aires o convida para trabalhar com ele, César Civita, com quem trabalharia por treze anos.

Uma vez na América, começa a entrar em contato com as diversas culturas abaixo da linha do Equador que influenciariam dúzias de histórias suas. Dentre essas culturas, encontrava-se a brasileira. Curiosamente, o editor que o empregou na Argentina era irmão do editor que fundou a Editora Abril no Brasil, Victor Civita.

Depois, regressa para a Itália em 1962, quando começou a colaborar com a revista de contos infantis il Corrieri dei Piccoli. Em 1967, conhece o artista Florenzo Ivaldi, com quem cria um personagem baseado em suas próprias características, o Sargento Kirk, primeiramente escrito por Héctor Oesterfield, ambientada na Guerra de Secessão norte-americana. Na primeira edição da revista, lança aquele que viria a ser seu mais famoso personagem, o marinheiro Corto Maltese.

A partir de 1970, passa a se dedicar exclusivamente às histórias de Corto, utilizando como referência todas as culturas e experiências que conheceu na sua vida de eterno viajante, conseguindo uma sólida reputação nos fumetti italianos (como os quadrinhos são conhecidos lá) e conquistando consagração internacional.

Corto Maltese e o relacionamento inter-cultural:



Tendo sido criado nos moldes dos personagens de autores de muito renome internacional, como Joseph Conrad, Stevenson e Hermann Melville, Corto Maltese demonstra um caráter particular muito distinto.

Sempre com a figura de um viajante incurável, nômade por natureza, Corto é em si mesmo uma figura que representa o acúmulo de culturas diferentes, uma vez que é filho de uma cigana de Gibraltar e um oficial da marinha britânica, e por toda a sua vida nunca parou por muito tempo em um lugar, estando sempre em movimento, em transição.

Como afirmam os estudiosos da nona arte, Carlos Patati e Flávio Braga, “na obra de Hugo Pratt, assim, realiza-se o maior projeto de comunidade e renovação dos quadrinhos de aventura”, pois Corto integra-se como habitante do mundo, sem fronteiras as quais obedecer, sem uma nação específica que lhe motive as ações ou lhe diga o que fazer.

Indagado sobre se o seu personagem e ele seriam a mesma pessoa, Hugo Pratt foge dizendo que há elementos sim com que ele se relaciona com seu personagem ficcional, porém infelizmente se trata mais de um agregado de eventos e experiências do que alguém individual. Afirma, porém, que ele pode ser encontrado em qualquer porto no litoral da América do Sul, cheio de histórias para contar (entrevista concedida pelo autor ao repórter Claude Moliterni que pode ser encontrada na introdução do livro “Corto Maltese – Sempre um pouco mais distante”, 2006).

Corto Maltese é, portanto, todos do mundo e ao mesmo tempo, ninguém, também. Seu destino está no vento, no mar, nas suas eternas desventuras sem limite de espaço, tempo ou cultura.

Casos específicos:

Tomemos como exemplo do relacionamento inter-cultural nas obras do Corto Maltese as histórias “Conga das bananas”, contido no livro “Corto Maltese – Sempre um pouco mais distante”, e “O Golpe de Misericórdia”, do livro “Corto Maltese – As Etiópicas”.

No primeiro caso, a história retrata o conflito no território hondurenho entre a união dos estados do norte (no caso, os Estados Unidos da América) e a população local, na época em que começavam a ser realizadas greves nas fábricas de banana. Em decorrência da Primeira Guerra Mundial, o preço das bananas entra em queda e a taxa de exportação começa a cair, o que leva a população de Honduras a se revoltar, começando a organizar greves nas indústrias fruticultoras.

A primeira greve que caracterizou esse momento se deu precisamente em 1917, contra a companhia de frutas Cuaymel, que foi severamente punida pelo próprio exército de Honduras. Em 1920, uma greve geral na costa do Caribe levou os Estados Unidos a reagirem de forma bruta, despachando navios de combate para a região. Em resposta, o governo do país sul-americano começar a repreender de forma mais firme os líderes locais dessas rebeliões.

Na obra de Pratt, Corto Maltese se vê acidentalmente no meio de um jogo de interesses políticos em conflito indireto. Mais interessados em conseguir dinheiro do que em proteger qualquer ideal, tanto os oficiais do norte quanto aventureiros da própria região lutam num vai-e-vem de interesses, sempre escondendo suas reais intenções.

É só na figura de Boca Dourada, antiga conhecida de Corto de quando ele estava na Bahia, que se encontra alguma firmeza de interesse, que vai além do dinheiro, mas sim no cuidado de seu povo, que ela diz, ao final, ter vencido a guerra das bananas.

A comunicação entre os defensores do norte e os defensores do povo de Honduras se dá de forma falsa, no sentido que os primeiros fingem querer proteger os habitantes da região que tenham descendência da mesma região de origem deles, quando na verdade, buscam apenas uma forma de manter uma fonte de lucro com o comércio da região. Acredito que eles buscam uma razão para não saírem da região pois os Estados Unidos havia mandado que regressassem ao solo americano por causa do ingresso na Primeira Grande Guerra, em 1917, porém, isso não é confirmado claramente.

Na segunda história, numa das obras mais aclamadas do personagem pela crítica internacional, Corto Maltese se vê, no capítulo em questão, “O Golpe de Misericórdia”, no meio do conflito entre um oficial britânico e o xeque somali que reuniu os dervixes contra os colonizadores ‘infiéis’, Mohammed Bin Abdullah Hassan, conhecido pelos ingleses pelo apelido de Mad Mullah.

Entretanto, uma das figuras mais significativas para o contexto histórico-político-religioso-cultural da história é, na verdade, um dos ajudantes de Corto, o nômade Cush, cujo nome, em si só, já representa uma referência à sua raça: os cuchitas. Tal qual Corto, Cush é um andarilho sem casa ou destino, porém, diferente do marinheiro europeu, é fiel ao mulá, à lei do Corão, e a luta de seu povo pela liberdade. Seu conflito com o oficial britânico na história, o capitão Bradt, se dá justamente pela intolerância do oficial com seu posicionamento.

Agindo de forma intransigente, o oficial Bradt sela seu próprio destino ao desrespeitar o que Cush defende. Cush leva, então, a punição ao oficial, retornando à base comandada por Bradt depois de ter sido expulso de lá, mas desta vez na companhia dos guerreiros do mulá.

Corto se posiciona de forma isolada na história, mais observando o desenrolar dos eventos sem reagir fisicamente ao que ocorre, apenas lutando por sua própria sobrevivência, tomando uma atitude quanto à questão principal do capítulo apenas no seu final, realizando aquilo que o título da história entrega, tirando a vida de Bradt para preveni-lo de uma morte mais sofrida amarrado no centro de uma fogueira imensa.

Conclusão:


As histórias de Corto Maltese possuem um teor de narrativa da comunicação cultural num parâmetro dificilmente encontrado em outras obras. Tal qual o marinheiro Marlow, na obra “No Coração das Trevas”, de Joseph Conrad, Corto observa tudo que lhe acontece de uma posição particular, sem ser guiado por ideologias fechadas e/ou nacionalistas. Ambos não tem nação mental, são integrantes do mundo como um todo, prezam pelo ser humano e não põem uma cultura sobre a outra, apenas transitam entre aquelas a que são apresentados. Marlow, após sua experiência no coração do Congo, passa a refletir sobre o que é ser humano, o equilíbrio entre a civilidade e a selvageria que constituem o ser. Da mesma forma, Corto vê a vida sem prejulgar se uma nação está mais certa que a outra, se uma cultura é superior à outra, mas vê a preservação da vida em si como algo a ser zelado, contanto que isso não lhe prejudique, pois tal qual Marlow, ambos são capazes de matar quem quer que lhes ameace para poderem se salvar.

Sendo ambos personagens criados por escritores com experiência de vida real nos locais onde viajaram na ficção, é perceptível o tom naufrago de suas vidas num mundo em contínuo movimento, sendo guiados pelas ondas dos interesses coletivos e pessoais do restante do mundo, mas cuja embarcação está sempre sob seu comando, com a nau nas mãos de marinheiros da vida experientes e imparciais, rumo sempre ao horizonte inatingível, recheando páginas e páginas com histórias de suas jornadas pelo caminho.

Bibliografia:

http://www.omelete.com.br/

http://www.universohq.com.br/

http://quadrinhospraquemgosta.blogspot.com/

http://en.wikipedia.org/wiki/History_of_Honduras_(1838%E2%80%931932)

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Um comentário:

Nuno Amado disse...

Bom artigo GG!
Claro e sem muita "palha".
:)
Penso que a ASA já editou neste momento as Etiópicas do Corto, em formato capa dura e com muitas linhas escritas sobre esta obra de Pratt. Estes livros são caros, pois trazem um monte de extras (fotografias, biografias, etc...) e são editados em papel e capa de luxo.
Mas são capazes de valer a pena para quem é fã do Corto!

Abraço